Retornados: A mãe ficou rouca para sempre

O êxodo das ex-colónias começou ainda em 1974. A mãe revive-o ao confrontar-se com as imagens dos que agora fogem da guerra.

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A mãe com o pai, hoje Adriano Miranda
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A mãe com o pai, há mais de 40 anos Adriano Miranda
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O tio João, hoje Adriano Miranda
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O tio João, há mais de 40 anos Adriano Miranda
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O tio Arlindo, hoje Adriano Miranda
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O tio Arlindo, há mais de 40 anos Adriano Miranda
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A tia Rosa e o marido, hoje Adriano Miranda
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Adriano Miranda
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Adriano Miranda

[Um homem, uma mulher e um bebé, aos ais, caídos numa linha de comboio. Uma mulher de pé, curvada, a abraçar dois meninos que choram.] A mãe evita olhar para o televisor. [Um menino a entrar pela janela de um comboio, o corpo em suspenso, os olhos rasos de água. E outro a subir uma ribanceira com um bebé ao colo, num pranto.] A mãe prefere olhar para o que está a fazer – descascar legumes, cortar carne, pôr a mesa, comer, lavar louça, o que for. Revê-se no desespero de sírios, afegãos, iraquianos e outros empurrados pela violência. “Eu sei o que é fugir. Eu sei o que é fugir com um filho em cada mão e outro na barriga...”<_o3a_p>

Ao tempo que isso foi. A mãe tinha quase 30 anos, André quase nove, Duarte sete, eu nem fazia volume na barriga dela. Engravidara dois meses antes em Porto Amélia, hoje Pemba, a capital da província de Cabo Delgado, no Norte de Moçambique. Mudara-se havia pouco para a Matola, contígua a Lourenço Marques, hoje Maputo.

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A mãe está prestes a completar 71 anos. Os caracóis esbateram-se. O cabelo ficou ralo. O rosto ganhou uma teia de rugas. As datas já se perdem na sua cabeça. Na de Ribeiro Cardoso não. Ribeiro Cardoso é jornalista, fez parte da Comissão Administrativa Militar que dirigia a Rádio Clube de Moçambique (RCM), escreveu o livro O Fim do Império: Memória de um soldado português/O 7 de Setembro de 1974 em Lourenço Marques.

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Uma delegação do Estado português e outra da Frente de Libertação de Moçambique, a Frelimo, reuniram-se a 5 de Setembro em Lusaca, na Zâmbia, para negociar a transferência de poderes. Ao aceitar quem fez a luta como único representante do povo, Portugal dispensava cerca de duas dezenas de movimentos e partidos de formação recente. No dia da assinatura do acordo, a Praça de Mouzinho de Albuquerque, hoje Praça da Independência, encheu-se de gente inflamada, que desaguou na rua da RCM. Conta Ribeiro Cardoso que três elementos pediram para serem recebidos por ele e pelos outros militares que dirigiam a estação. Queriam acesso directo aos microfones para afirmar que alguém conduzira um carro com uma bandeira da Frelimo ao alto e uma bandeira de Portugal no chão e expressar desacordo com o acordo de Lusaca. O pedido foi-lhes negado. Volvido um quarto de hora, a turba invadiu o edifício.<_o3a_p>

Identificaram-se como Movimento Moçambique Livre e sonhavam com uma independência “branca”. Pela rádio, pediam a intervenção da África do Sul, da Rodésia, hoje Zimbabwe, dos comandos de Montepuez. Faziam-no entre batuques, hino nacional, Grândola Vila Morena e outras canções a despropósito. Libertaram os membros da PIDE/DGS, tomaram a sede dos correios, o aeroporto civil, a posto emissor da RCM, perante militares e polícias divididos. “Em três meses, não mudou a mentalidade das pessoas”, comenta Maria Paula Meneses, investigadora-coordenadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. “Militares e polícias não estavam politizados no sentido de reconhecer os movimentos nacionalistas negros como forças legítimas e qualificadas para tomar o poder.”<_o3a_p>

Primeiro, alguns radicais conservadores “brancos” distribuíram tiros nos subúrbios habitados por negros. Depois, "negros" começaram a avançar, como um tufão, em direcção a cidade. Com catanas, paus, machetes, pedras.<_o3a_p>

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A mãe resume tudo na palavra “barulhos”. A mãe diz: “Nisso dos barulhos, eu estava na Matola”. Estava com uma antiga vizinha, a Maria Moderno. O marido desta, o Quirino, trabalhava na esquadra da Matola e apareceu sem aviso para a levar e às filhas de ambos. A mãe, André e Duarte foram com eles. O pai não lhes poderia valer. Estava longe. Trabalhava na esquadra da Polana, em Lourenço Marques.<_o3a_p>

Quirino andava de um lado para o outro. E, por toda a parte, via velozes movimentos de pavor. Carros incendiados, lojas saqueadas, edifícios destruídos. Uns gritavam de raiva. Outros uivavam de dor. “Tanta porcaria!” Quis pôr a família a salvo. “Ao lado da esquadra havia uma dependência de um médico e ele emprestou essa dependência para a gente guardar a família”, conta ele. Naquela época, não abundava gente com carta de condução. “Precisavam de mim. Tive de sair, de fazer qualquer coisa. Quando voltei, elas não estavam. Um subchefe tinha-as levado para o quartel dos fuzileiros. Eles estavam a receber famílias inteiras.”<_o3a_p>

A mãe aguentou três dias sem comer, sem tomar banho, sem mudar de roupa. Lembra-se de que “um tipo dava pão aos pequenos”. Lembra-se de que “eles comiam esse pão seco e bebiam água da torneira”. Lembra-se de que “a água saía quente”. Quando lhe perguntei onde esteve, usou a expressão “campo de concentração”. “Não pode ser”, retorqui. “Havia aí um quartel. Era afastado [de casa], mas não era muito. Tinha muita gente e tinha tropa. Era como esses tristes que vêm agora de fora. Sabem tanto para onde vão como eu sabia nessa hora.”<_o3a_p>

Não encontrei referências nos livros. Era como se todos tivessem sido revolucionários ou reaccionários, heróis ou vilões. Só quando Quirino referiu o quartel dos fuzileiros, percebi. Junto ao quartel, havia uma dupla prisão. Num lado, os presos de delito comum. No outro, os presos controlados pela PIDE/DGS. E não faltava quem chamasse campo de concentração àqueles oito pavilhões compridos, rasos, separados por pátios de terra solta.<_o3a_p>

“Tanta gente havia aí…”, afiança a mãe. “Muitos choravam. Uns porque a casa tinha ardido, outros porque tinham perdido o negócio.” O tempo passava e a destruição prosseguia lá fora. “Eu já andava caída. Ao terceiro dia, tomei um copo de cacau que um soldado me deu e vomitei-o todo.” Não era só a fome, o cansaço. Era o medo, o desnorte. “Nem a gente sabia onde estava teu pai, nem teu pai sabia onde a gente estava.”<_o3a_p>

Ateado o ódio racial, o confronto ameaçava atingir proporções inimagináveis. Uma elite africana, militante da Frelimo, tinha-se reunido no bairro suburbano de Mafalala para organizar a defesa e evitar reacções violentas. Foi depois de ouvir essa base que o chefe do Estado Maior do Comando Territorial Sul e do Comando Operacional de Lourenço Marques decidiu lançar o assalto à RCM, a 10 de Setembro. Acompanhado por uma brigada de pára-quedistas, Aurélio Le Bon, militante da Frelimo, antigo comando do Exército, disfarçado de alferes, deu a senha ao microfone: “Galo, galo amanheceu.”<_o3a_p>

Só quando a violência parou, a mãe, André e Duarte regressaram a casa. Tornaram a aproveitar a boleia de Quirino. “Ainda havia carros queimados na estrada”, recorda ela. A cidade procurava a normalidade possível. Em casa, tudo no sítio. “Os bichinhos todos tratados. Ninguém roubou nada ali. Se a gente tinha ficado, talvez nada tivesse acontecido à gente. Ela [a Maria Moderno] sempre foi boa mulher.” Nem todos podem dizer o mesmo. Havia largas centenas de mortos para enterrar. Muita gente fugiu para a África do Sul.<_o3a_p>

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A tia Rosa fugiu para a África do Sul. Estava em Cahora Bassa, na província de Tete, com o marido e os filhos, de sete e cinco anos. O tio Agostinho trabalhava na barragem. Chefiava 18 elementos da Organização Provincial de Voluntários e Defesa Civil, a milícia colonial, treinada para manejar armas e fazer operações de caça ao homem.<_o3a_p>

Ela ouviu as notícias pela rádio. E se “aquilo” chegasse ali? E se toda a população “negra” se virasse contra toda a população “branca”? Que seria da família? “Parece que há males que vêm por bem”, diz, agora. Paulo foi mordido por um cão e a sabedoria de então abria duas hipóteses: “Se o cãozinho morresse, tinha raiva. Se não, o pequeno é que tinha raiva e tinha de ser tratado.” Como não morreu, só havia um caminho: o da África do Sul.<_o3a_p>

Viajaram até Lourenço Marques. Havia uma corrida aos bancos, aos consulados, às companhias de aviação. “Foram dois ou três dias [no consulado] para ter a ‘visa’. O tio tremia. Eu tremia. Chegámos a ouvir na camioneta o bilheteiro a dizer: ‘Até aqui vocês mandaram, agora vão ser mandados pela gente.’ Fomos para embarcar, não havia viagens. Fomos duas ou três vezes ao aeroporto.” Cruzaram-se com Quirino. Ele intercedeu por eles: “Era um colega que ia com o filho ao médico”.<_o3a_p>

Desembarcaram em Joanesburgo. “Levávamos uns saquinhos com umas pecinhas de roupa. Também não havia muita roupa, como hoje. Estávamos no aeroporto. Não sabíamos para onde ir. O tio chorava, eu chorava.” Ao vê-los naquele desamparo, um motorista de táxi aproximou-se. Eles não falavam inglês. Ele falava um pouco de português. O tio disse-lhe que tinha alguém no Bez Valley. E ele prontificou-se a levá-los, apesar de não saberem o nome da rua, nem o número da porta. Iam à procura. Entraram no subúrbio e a tia viu um cunhado dela a caminhar com um amigo. Nem queria acreditar. Ficaram uns dias. O suficiente para se restabelecerem e reorganizarem. Acolheu-os o tio João, que fora a salto para a África do Sul em 1960, morava em Hennenman, uma pequena cidade do Free State.

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O tio João estava à espera da mãe quando ela aterrou no aeroporto da Madeira, em Novembro de 1974. Ela ainda agora lhe agradece a presença inesperada, o abraço apertado, as fortes palmadas nas costas. A Maria Moderno chegara na véspera a São Vicente e avisara a avó Ana. “Eu sempre senti que tenho Deus em mim. Cheguei ali e encontrei o meu irmão!”<_o3a_p>

Uma chuvada ensopara-lhe roupas e cabelos. Seguira-se um calor intenso. O nervosismo não abrandara no voo. Foram horas de choro intermitente, silenciado. A voz dela mudou. Ficou com um tom áspero. A rouquidão nunca mais passou. “Tinha ido para lá ter uma vida diferente. Voltava sem pouco nem muito, um filho em cada mão, outro na barriga.” Pensava em como seria a vida, de volta àquele vale profundo. “Para sobreviver, não era como hoje, que há Segurança Social e peditórios nos supermercados.”<_o3a_p>

Era o princípio. Naquela altura, ainda ninguém falava em refugiados, nem sequer em retornados – essa palavra só haveria de entrar no discurso dos portugueses no ano seguinte, quando o Governo criou o Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais (IARN) e se tornou abismal o número de portugueses vindos da Guiné, de Cabo Verde, de São Tomé e Príncipe e, sobretudo, de Moçambique e de Angola.<_o3a_p>

Uma catana ao pescoço. Uma lâmina enorme, curvada, com um cabo em madeira. Tantas vezes ouvi a mãe dizer que não maltratou, que tratou com delicadeza “brancos” e “negros”, que ajudou quem pôde, que até ia levar latas de leite condensado a mães que embalavam filhos famintos, e que, nos dias do fim, lhe puseram uma catana no pescoço. Havia na mãe um grande sentimento de injustiça. Não conseguia perceber que não era o que ela fazia, era o que ela simbolizava, a simples presença dela ali, naquela terra tomada. O sentimento de injustiça desapareceu com a memória da lâmina. Talvez se tenha libertado à custa de tanto ser dita. “Uma catana? Já não sei. Apanhei tanto pedaço de mau caminho que nem é bom lembrar!”<_o3a_p>

Qualquer coisa dava faísca. Houve um novo surto de violência a 21 de Outubro, um mês e um dia após o alto-comissário português, Victor Crespo, ter dado posse ao Governo de transição chefiado por Joaquim Chissano, desta vez um confronto entre comandos portugueses e soldados da Frelimo. Muitos decidiram partir, inclusive alguns dos que antes tinham decidido ficar. “Percebi que os ‘brancos’ que ficassem iam ser maltratados”, diz o pai. Decidiu enviar a mulher e os filhos e ficar até ao fim. Ficar até às vésperas da independência, agendada para 25 de Junho de 1975, era garantir o direito a ser integrado na PSP em Portugal, o que, de certo modo, dava algum sentido àqueles anos.<_o3a_p>

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Findo o serviço militar, em Julho de 1969, o pai decidira fazer vida ali. “Eu disse cá para mim: ‘Eu sou filho de gente pobre. Se voltar para a Madeira, é para tratar de terras alheias. Metade para mim, metade para o dono das terras. Vou ficar aqui. Vou tentar ter uma vida melhor e dar uma vida melhor à minha mulher e aos meus filhos.’”<_o3a_p>

Concorreu para a Defesa Civil e para a Polícia de Segurança Pública. Ainda experimentou os caminhos-de-ferro. “Ia ser mandado para o Norte”, onde a tropa se batia contra a guerrilha. “Ia ser quase soldado e ganhar pouco mais.” Optou pela polícia. “O meu pensamento era ganhar algum dinheiro e comprar um restaurante, um café, um bar ou assim.” Não pensava num desfecho daqueles. “Havia uma guerra, mas era uma guerra de governos. Eu pensava: ‘Quando isto acabar, as pessoas ficam amigas umas das outras.’”<_o3a_p>

O Estado Novo facilitava a ida. Desde o início da guerra, fizera uma mudança estratégica. Procurava maior controlo e integração de africanos, eliminando o estatuto de indigenato, expandindo a educação, promovendo desenvolvimento económico, resume o sociólogo Rui Pena Pires no livro Migrações e Integração. E para Moçambique iam, sobretudo, funcionários públicos, professores, técnicos e pessoal de enquadramento e gestão de empresas. “Poucos se questionavam”, deduz Maria Paula Meneses. “O que estamos nós aqui a fazer? Que violência é esta? Hoje é senso comum que aquilo não fazia sentido, mas naquela altura fazia. Para aquelas pessoas, tudo aquilo fazia sentido.”<_o3a_p>

Portugal era um país rural, pobretão, semianalfabeto, velho nas ideias, atrasado nos costumes. A Madeira mais ainda. “O mundo rural era mesmo o fim o mundo. Ir de São Vicente ao Funchal era uma aventura que demorava três ou quatro horas. De vez em quando, o motorista tinha de parar para pôr água, senão [o motor] explodia. Havia um total alheamento do que era a política”, salienta o historiador Alberto Vieira. <_o3a_p>

A mãe diz: “Eu sempre disse: ‘Isto não é justo. Ir um ‘cachorro’ de um 'branco' para lá maltratar...’” Começou a dizer depois de ver o que por lá se passava. Antes de ir, não dizia. Cresceu sem luz eléctrica, sem água canalizada, sem jornais, sem rádio, sem televisão, sem convívio com gente politizada. Quando o pai falou em ir, nem pestanejou. “Eu estava ardendo para ir. Eu não sabia o que aquilo era. Sabia lá! Queria ir para ao pé do marido!” Sentiu a imediata subida do nível de vida. “Hoje em dia, tenho fartura. Nessa altura, não. Não havia fome em casa, mas também não havia gulosices. Quando cheguei lá, a meu ver, era uma princesa. Tinha um fogão, um frigorífico, uma boa cama, um rapaz para me ir buscar a água e me ajudar em casa.” E sobrava-lhe tempo para a costura, para o croché.<_o3a_p>

Adorava Porto Amélia, cidade de clima equatorial húmido. “Íamos quase todos os dias à praia. A água estava sempre quente”, recorda. Para um lado, mangal. Para outro, coral. Foi lá que descobriu a pílula, vestiu calças pela primeira vez. Só foi apanhada pela guerra naqueles dias do fim. E nos quatro meses que viveu no Quitrajo. Calor, mosquitos, doenças.  E espingardas, metralhadoras, morteiros armazenados em casa. Um ataque. E malária a apanhar as crianças e a apanhá-la. Foi nesse desespero que me quis ter. “Pedi a nossa Senhora da Saúde que me desse uma filha para me fazer um chá.” Naqueles dias do fim, em Lourenço Marques, teve tanto medo de abortar. E medo de ter uma criança atrofiada pelo medo. “Já viste o que faz a guerra? Nasceste, graças a Deus… Chorei de alegria. Uma menina! Perfeitinha!”<_o3a_p>

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A estrada acabava antes da casa dos avós. Os tios, Ernesto e Gabriel, alcançaram a mãe com duas crianças e três malas. Tinha “umas roupinhas, uns sapatinhos” e 7500 escudos – não era permitido trazer mais de 2500 por pessoa. A avó Ana usava roupas pretas, longos cabelos presos num ó. O avô Manuel morrera um ano antes com um cancro intestinal, deixando três dos oito filhos para terminar de criar.<_o3a_p>

Quando o pai voltou de Moçambique, pegaram no dinheiro que tinham, pediram algum emprestado, compraram um terreno rente à estrada e começaram a construir uma casa. Fizeram-na por fases. São Vicente não tinha esquadra. O pai foi colocado em Lisboa. Ainda lá trabalhou um ano e meio. “Havia colegas que iam visitar a família nas folgas. Eu não podia fazer isso. Fazia ‘gratificados’. Às vezes, fazia três. Também… vim de África sem nada… Queria era ganhar algum para ir mandando.”<_o3a_p>

Há ainda quem se pergunte como foi possível 505.078 portugueses integrarem-se tão depressa. E há cada vez mais quem conte como foi. A mãe não tem memória de se ter sentido olhada como intrusa. O pai, sim: “Alguns pensavam que os retornados não tinham direito a voltar – vinham tirar o trabalho deles, a comida deles.”<_o3a_p>

A imprensa, tomada pelo calor da época, não tratou de esclarecer a opinião pública – era como se fossem todos reaccionários, exploradores de “negros”, a fugir a uma mudança aplaudida pelo mundo, como se atrás deles não houvesse violência. E a economia estava em baixo. Com a criação do IARN, em Março de 75, o país começou a organizar uma resposta. E essa resposta gerou ainda mais reacção. <_o3a_p>

A mãe nunca ouviu falar em incentivos para fazer casa ou montar negócio. A prima Conceição, residente no Funchal, falou-lhe numa pequena ajuda e ela foi averiguar. “Trouxe quatro cobertorzinhos fraquinhos. Dei um a minha mãe, outro a minha sogra, fiquei com dois. Não dormi com eles. Usei-os para passar a ferro. Trouxe umas roupas, mas não me serviam, dei-as a uma cunhada. E trouxe manteiga. Fizemos um bolo e não se podia comer. Nesse dia, fiz cruz: havia Nossa Senhora de me dar força a mim e ao meu marido para a gente não andar à esmola de ninguém. Muito obrigada! Não me falta nada. Foi preciso muito esforço, mas nunca mais pedi nada a ninguém.”<_o3a_p>

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Muitos dos sete mil que a descolonização atirou para o arquipélago não tardaram a partir – para a África do Sul, para o Brasil, para a Venezuela, para o Reino Unido… “Ficaram os que arranjaram trabalho. A ilha esperava por tudo e não tinha nada”, resume Alberto Vieira. “Nem a ilha tinha condições para os receber, nem eles estavam dispostos a voltar ao passado. Depositaram a esperança na emigração.”<_o3a_p>

Em todo o país houve quem tivesse tornado a partir. Aquando dos censos de 1981, 60 mil dos que tinham vindo das antigas colónias já cá não estavam. E no início dos anos 80, refere ainda Rui Pena Pires, outros 12 mil. A família reflectia o movimento de saídas do território nacional. Era uma família cheia de ausências. <_o3a_p>

O tio João continuava na África do Sul. A tia Rosa e o tio Agostinho também. O tio Arlindo foi para a Venezuela. O tio Martinho e o tio Gabriel também. Dos homens do lado da mãe, já só faltava o tio Ernesto. “Eu achava-me envergonhado. Ia à missa e já não via rapazes”, conta ele. “Todos caminhavam e eu ali, armado em tonto. Um homem… Sozinho... Eu pensei: ‘Bem, vou caminhar também!’” E lá foi ele.<_o3a_p>

Tios partiam, primos partiam, vizinhos partiam. Um dia, os irmãos partiram. A emigração é um contínuo desde a II Guerra Mundial. Nunca parou, embora tenha abrandado nos anos de euforia. Portugal é dez milhões de pessoas aqui dentro e dois milhões de pessoas lá fora. “Não penses que foram todos por querer!...”, adverte a mãe. “Quantos foram mesmo sem querer? Como esses que agora vêm para aqui…” <_o3a_p>

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