Edward Frenkel: “Quando fazemos matemática, o mundo exterior deixa de existir como quando fazemos amor”

Matemático russo esteve em Lisboa a lançar a edição portuguesa do seu livro Amor e Matemática (Casa das Letras). O PÚBLICO pediu a outro matemático, o português Jorge Buescu, autor de livros como O Mistério do Bilhete de Identidade e Outras Histórias (Gradiva), que o entrevistasse.

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O matemático russo Edward Frenkel Miguel Manso
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Edward Frenkel Miguel Manso
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Edward Frenkel Miguel Manso

Nascido há 47 anos na Rússia, na cidade industrial de Kolomna, a 70 quilómetros de Moscovo, Edward Frenkel é agora docente na Universidade da Califórnia em Berkeley (EUA). Aos 21 anos, depois dos estudos na Rússia, tornou-se docente na Universidade de Harvard (EUA). O seu livro Amor e Matemática ganhou em 2015 o Euler Book Prize, atribuído a obras “extraordinárias” pela Associação de Matemática da América, e está traduzido em 12 línguas. Nesta entrevista, o matemático fala como foi perseguido na Rússia por ser judeu, o que lhe deu forças e o levou a transcender-se. E que na Rússia actual se nega que essa perseguição tenha acontecido. Quanto à matemática, é como o amor: “Só faz sentido se a partilharmos”, diz. “Partilhar o meu conhecimento e as minhas descobertas é partilhar o amor. É amar os outros.”

Podes descrever a estratosfera matemática em que te moves: o Programa de Langlands?
O Programa de Langlands é uma das ideias mais excitantes da matemática nos últimos 50 anos. O objectivo é descobrir relações escondidas entre áreas distintas da matemática. Foi iniciado nos anos 1960 por Robert Langlands mas ultrapassou em muito o objectivo inicial. A sua ideia era a de relacionar a Teoria de Números – não apenas os números inteiros, mas outros conjuntos mais gerais como corpos numéricos – com a Análise Harmónica: o tipo de matemática que nos permite interpretar os sons, como os de uma sinfonia.

É uma área vibrante e com uma vivacidade extrema. Por exemplo, a demonstração do Último Teorema de Fermat, que esteve em aberto 350 anos, por Andrew Wiles, em 1993-95, deveu-se a ideias provenientes do Programa de Langlands. Por outro lado, elas propagaram-se a outras áreas. Eu próprio tive um papel activo na sua extensão à geometria e a Teoria de Representações. E, já nos anos 2000, surge o milagre de se descobrir que tudo isto está relacionado com a física quântica! Quando se começou a compreender isto, eu promovi uma reunião em Princeton, que descrevo no livro, com matemáticos e físicos, a que foi Edward Witten (o único cientista que é simultaneamente Prémio Nobel [da Física] e Medalha Fields). Ele ficou entusiasmado. E assim se abriu uma nova janela para compreender o mundo.

A parte científica do teu livro é dedicada a explicar as grandes ideias do Programa de Langlands. Vê-se que tens uma grande admiração por ele...
Robert Langlands é um herói. Ele ocupa hoje, em Princeton, o antigo gabinete de Einstein. Estou intimamente convicto de que Langlands merecia o mesmo reconhecimento público que Einstein. Talvez daqui a umas décadas, quando as consequências da sua visão sobre a matemática forem evidentes.

Quando digo que sou matemático, perguntam-me por vezes: “Mas a matemática não está já toda feita?” O que dizes sobre isto?
Quem pergunta isso tem uma ideia totalmente distorcida da matemática. Acha que o trabalho de um matemático oscila entre ser um rato de biblioteca e fazer contas com números muito grandes. Uma boa analogia é a seguinte: se te apresentasses como pintor, suporiam que o teu trabalho é pintar paredes ou muros. E quando a seguir explicasses que, pelo contrário, lidas com ideias e conceitos de uma beleza extraordinária, que tiveste uma ideia revolucionária, que olhaste para um resultado e… UAU!, ficaste arrepiado, que estiveste a dar uns retoques numa obra-prima… se calhar acham, coitado de ti, que passas a vida a pintar paredes e muros e tu próprio ainda pensas que isso é o máximo! Mas são eles que não estão a perceber que a matemática é arte. Quando num jantar de amigos me pedem para fazer as contas “porque sou matemático”… é um pouco como se num “cocktail” com Picasso lhe pedissem para pintar a parede “porque é pintor”.

E como podemos despertar a sensibilidade do público para isso?
Como eu faço no meu livro: dando exemplos concretos dessa beleza e explicando-a. É mais difícil do que nas artes plásticas, porque os padrões em matemática são mais abstractos. Mas temos de o fazer! A matemática é como o amor: só faz sentido se a partilharmos. Se descobrimos algo em matemática, queremos ir a correr contar aos outros: não faz sentido, nem sequer tem valor, guardar um pedaço de matemática para nós próprios. Pensa em Galois, por exemplo – outro homem que devia ser venerado como um herói. Ele morreu aos 20 anos, num duelo passional, em plena Revolução Francesa. O que fez ele na noite de véspera? Escreveu uma carta de amor à namorada? Não! Escreveu uma carta de amor a todos nós, à humanidade, e deixou-nos em herança um conjunto impressionante de ideias matemáticas muito à frente do seu tempo. Essa noite viu a fundação da Teoria de Grupos. Só 50 anos depois da sua morte se começou a compreender a profundidade das ideias de Galois. Hoje elas são centrais em áreas tecnológicas como as telecomunicações e a criptografia. Se hoje temos homebanking ou smartphones é graças ao gesto de amor de Galois.

Foi portanto por amor que te começaste a interessar pela divulgação da matemática?
Claro! Seria um escândalo não o fazer. Partilhar o meu conhecimento e as minhas descobertas é partilhar o amor. É amar os outros. Se descobrimos um tesouro não queremos escondê-lo: pelo contrário, queremos partilhá-lo com os outros.

E sentes que é um amor correspondido?
Acaba de ser emitida, num dos maiores canais generalistas da TV japonesa, uma série de quatro palestras que preparei sobre o Programa de Langlands, gravado em Berkeley, no Instituto de Ciências Matemáticas (MSRI). Passou em prime time, às sextas à noite, durante um mês, num programa de grande divulgação, não apenas científica, chamado Luminous Classroom. Não podes imaginar: teve uma audiência de milhões. Sabia quando os programas passavam no Japão porque começava a receber mails e tweets a meio da noite. Milhares por semana!

Seria uma grande ideia a TV portuguesa seguir o exemplo da japonesa e transmitir nesses teus programas. A propósito de filmes, fiquei muito curioso com o teu filme Rites of Love and Math. Queres falar sobre ele?
A ideia surgiu devido à frustração sobre a compreensão da matemática de que falávamos há pouco: os alunos do ensino secundário, e portanto a maioria dos adultos, aprenderam a pintar paredes, mas nunca viram a obra-prima de um mestre. Nem mesmo têm consciência de que exista. Senti portanto que tinha o dever de transmitir isto. Em conversa com artistas – que não explicam o que fazem, cada um que interprete como gosta – veio-me a ideia: e se eu não tentar explicar nada? Se só mostrar que a matemática envolve beleza, paixão – e amor? Tomando como ponto de partida, até no nome, um filme do Mishima, o filme tem como protagonista um matemático que quer celebrar o amor eterno tatuando uma fórmula matemática complexa no corpo nu da amante.

O matemático no filme és tu?
Sim, eu próprio. E a fórmula também é minha. Quis transmitir com isto que a matemática penetra no teu ser, que os matemáticos são como artistas. Que, quando estamos a fazer matemática, o mundo exterior fica suspenso, deixa de existir como quando fazemos amor.

Deixa-me fazer uma pergunta que fiz há um mês a Cédric Villani, sobre a França. Por que é que os matemáticos russos são excelentes?
França e Rússia são casos muito diferentes. Em França, é sem dúvida um legado cultural. Na Rússia, a excelência começou apenas na era soviética, como efeito perverso do regime repressivo da URSS. Em todas as outras áreas de criação intelectual, social ou artística, era impossível as pessoas exprimirem-se livremente. Nas humanidades, nas ciências sociais, em economia, tudo era violentamente censurado. Não se podia escrever um livro ou fazer um filme sem censura. Até na biologia os efeitos foram dramáticos: Trofim Lysenko, por discordar dos “princípios da genética burguesa” – como se houvesse tal coisa! –, mandou prender e executar os seus opositores científicos. Com isso, a genética soviética regrediu 50 anos, e os efeitos negativos sobre a agricultura foram dramáticos.

E por que escapou a matemática?
A matemática e a física foram as únicas áreas que escaparam ao controlo absoluto. A física porque o poder político a sabia necessária para a construir a bomba atómica. A matemática porque, embora não a compreendesse, sentia que era necessária para a física. Assim, um jovem talentoso na URSS tinha a sua criatividade totalmente reprimida à nascença, a menos que se refugiasse na matemática. A matemática tornou-se, na URSS, um refúgio para o talento, uma espécie de oásis onde a brutal repressão não entrava. Na conferência que fiz na Universidade de Lisboa [no último domingo], citei o matemático alemão Georg Cantor, lembras-te?

Sim: “A essência da matemática é a liberdade”.
Pois. Na URSS, ironicamente, essa frase tornou-se o mais realista possível. A matemática era o único local onde um espírito jovem e criativo encontrava liberdade. É espantoso como esta cultura do medo e do ódio levou, perversamente, ao cultivo da matemática.

Tu próprio foste vítima de perseguições e de anti-semitismo, como contas no livro…
Estas histórias têm de ser contadas. Não podem ser esquecidas. O sistema era violentamente discriminatório contra minorias: perseguia activamente os “indesejáveis”. No meu caso, a Universidade de Moscovo simplesmente, não admitia alunos judeus. Judeus étnicos, de sangue – na URSS não existia religião. O passaporte interno tinha uma linha que identificava a nacionalidade, e a discriminação era contra muitas outras minorias: tártaros, arménios…

No meu caso, fiz o exame de admissão à Universidade de Moscovo, aos 16 anos, com notas perfeitas. Enquanto os outros alunos saíam, eu fui arrastado para uma sala e submetido a um interrogatório de quatro horas por vários professores. Com matéria muito para além da examinável. Muitas vezes com coisas que nem faziam sentido. Foi uma experiência traumática, uma verdadeira tortura. Claro que o resultado estava determinado à partida: excluíram-me. Chorei de raiva. Acabei por ir estudar para o Instituto do Petróleo e do Gás, onde estavam outros judeus e “indesejáveis”. Mas esta experiência traumática deu-me forças e levou-me a transcender-me.

A Universidade de Moscovo era um caso isolado?
De modo algum. Isto passava-se em todo o lado. Centenas de milhares de estudantes foram remetidos à exclusão por este sistema. O objectivo deles não era convencer-te a não estudar, era mesmo destruir-te – aos 16 anos! Conheço pessoalmente casos de miúdos que se suicidaram, outros que foram parar a hospitais psiquiátricos – e deves saber o que eram os “hospitais psiquiátricos” da URSS. O sistema soviético era um bulldozer que tinha apenas o objectivo de esmagar e destruir tudo à sua passagem. Era uma manifestação do totalitarismo: mesmo que não houvesse razão para o fazer, fazia-o na mesma – nem que fosse para mostrar onde estava o poder. É muito importante contar a história, para evitar que ela se repita. E, na Rússia actual, nega-se que isto tenha acontecido.

Como? Mas tudo isto deve estar documentado!
A transparência não existe na Rússia de hoje. Lembras-te do discurso de Krushchev, em 1956, a denunciar o estalinismo? A Rússia actual recusa-se a fazer o correspondente em relação a esta era negra, até à Perestroika. O meu avô esteve no Gulag, na Sibéria, a trabalhar nas minas com uma acusação imaginária. O meu pai não pôde estudar por ser judeu. Eu também não (mas saltava os muros da universidade para ir a aulas de matemática). Nunca houve purificação nem expiação por este período negro… Milhões de pessoas sofreram, e nunca houve reparação. E pior: muitas das pessoas que praticaram estes crimes estão agora no poder na Rússia. Se cometes um crime contra alguém, tem de haver um processo de reparação, de expiação, de limpeza. Na Rússia não houve. Pior: eles negam estes crimes. E portanto podem repeti-los.

Regressaste à Rússia depois de saíres, em 1989?
Não. Trouxe os meus pais e a minha família para os Estados Unidos.

Deixa-me fazer uma pergunta sobre Portugal. Imagina que tenho 15 anos e adoro matemática. O que me aconselharia um grande matemático de Berkeley como tu?
Que nunca desista dos seus sonhos, por muito grandes que pareçam as dificuldades. Hoje há imensos recursos para aprender mais: vídeos, livros… Recomendo vivamente o canal do Youtube Numberphile: tem um milhão e meio de seguidores, e todas as semanas têm um ou dois novos vídeos fantásticos de sete a dez minutos. Eu próprio já gravei vários para lá. Mas o essencial são as pessoas que se descobrem. O meu livro mostra bem o papel decisivo que tiveram os professores ao longo da minha carreira. Dedico-lhes o livro em agradecimento ao imenso papel do amor que eles me dedicaram. Um jovem ambicioso deve acima de tudo preparar-se bem: como dizemos na Rússia, “o bom professor surge apenas quando o estudante está pronto”.

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