Comunidade desimaginada

Passam hoje 200 anos sobre a fundação de uma das uniões políticas mais curtas e curiosas de sempre. E nós fizemos parte dela: foi a 16 de dezembro de 1815, longe de uma Europa recém-saída das guerras napoleónicas e em reorganização no Congresso de Viena, que Dom João VI proclamou no Rio de Janeiro o Reino Unido de Portugal, do Brasil e dos Algarves. Único exemplo, até hoje, de um império pluricontinental com capital no hemisfério sul, o Reino Unido durou meros sete anos. De um lado e do outro do Atlântico, as elites não se entenderam: se o lado brasileiro acabou por optar pela separação, o lado português também não tinha já aceitado, após a Revolução Liberal, ter no Congresso do Reino Unido o mesmo número de deputados que tivesse o Brasil  (uma exigência que hoje nos parece absurda e que se tivesse perdurado daria a Portugal talvez dez vezes mais deputados do que a São Paulo, que tem quatro vezes mais população).

Que eu tenha visto, apenas o jornalista e historiador brasileiro Laurentino Gomes deu pela efeméride, numa crónica do jornal carioca O Globo na qual exprime uma certa incompreensão pelo esquecimento oficial. Nota ele que, afinal, se trata de uma das poucas comemorações simétricas entre os dois países. Ao contrário do Descobrimento, que Portugal oficialmente comemora, mas que no Brasil (e não só) muitos deploram pela escravatura, o genocídio indígena e a subalternização política, e da Independência, que o Brasil oficialmente comemora contra Portugal, o Reino Unido teria a vantagem de poder ser celebrado pelos dois lados: pelo Brasil, porque marca a data em que deixou de ser uma colónia; e por Portugal, por ter sido um momento em que a necessidade aguçou o engenho.

Podemos ir buscar as razões do costume para a negligência do costume: Portugal e Brasil são países institucionalmente débeis e a passar por momentos de transição governativa ou confusão política, com dificuldade em fazer planos a longo prazo e com um défice de memória histórica para lá da retórica dos grandes momentos. Podemos até argumentar que isto não tem importância, que as comemorações servem para pouco ou nada e raramente têm qualquer fidedignidade histórica. Mas não chega.

Além de todas as razões expostas, o Reino Unido não é comemorado por não se ter cristalizado num estado. Como qualquer estado ou nação, ele foi uma “comunidade imaginada”, para usar a expressão de Benedict Anderson, antropólogo do nacionalismo e do anarquismo falecido há poucos dias. Só que parece imaginado demais, porque deixou de ser estatal e, assim, não tem parte interessada nele.

Lembrá-lo, contudo, e até oficialmente, faria todo o sentido — esquecê-lo é que é só testemunho da falta de rasgo nas relações luso-brasileiras, aliás a mesma que encontramos multiplicada na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. E isso é uma pena. Onde poderíamos imaginar, para concretizar, uma comunidade democrática com uma jurisdição comum de direitos civis e políticos e uma aposta ambiciosa na mobilidade, na criatividade e na cultura, ficamos apenas com a banalidade (e às vezes pior: a venalidade).

Estar aquém-mar não é um problema. O problema, às vezes, é simplesmente estar aquém.

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