HRW revela "provas autênticas e cabais" da máquina da morte do regime sírio

Dissidente sírio recolheu imagens de mais de 6000 prisioneiros mortos em instalações do Governo. Human Rights Watch revela os “padrões sistemáticos” de tortura, privação e homicídios nas prisões de Assad.

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Os "desaparecimentos forçados" são prática comum na Síria de Bashar al-Assad, como já o eram no tempo de seu pai, Hafez. SANA/AFP

A organização humanitária Human Rights Watch revelou nesta quarta-feira uma investigação a dezenas de milhares de fotografias de prisioneiros que morreram sob a tutela do regime sírio e Garante que as imagens são “provas autênticas e cabais de crimes contra a humanidade” cometidos pelo Governo de Bashar al-Assad.

Estas imagens foram divulgadas há mais de um ano por um dissidente do regime, a quem foi dado o nome de código “César”. Como fotógrafo do exército, era sua responsabilidade documentar a morte de prisioneiros capturados pelos serviços de informação sírios. Os certificados de óbito, assegura, concluíam invariavelmente que as causas de morte destes prisioneiros se deviam a “ataque cardíaco” e “problemas respiratórios”. Mas as imagens contam outra história.  

Há mais de 55 mil fotografias no arquivo de “César”. Foram tiradas entre Maio de 2011 e Agosto de 2013, mês em que o antigo militar fugiu do país, levando consigo as imagens. Destas, mais de 28 mil são de corpos de detidos nas prisões militares do regime. Pensava-se antes que representavam cerca de 11 mil cadáveres diferentes, mas, de acordo com um dos braços da oposição síria (a Associação dos Prisioneiros de Consciência e Desaparecidos), há 6786 pessoas neste conjunto de imagens – há mais do que uma fotografia de cada e “César”, como outros fotógrafos do regime, não recolhiam apenas imagens de prisioneiros mortos, mas também de atentados, homicídios e operações terroristas contra figuras do Estado sírio.

A Human Rights Watch debruça-se sobre os casos de 27 vítimas que identificou. Para comprovar a autenticidade das fotografias, a organização falou com as famílias dos detidos e com dezenas de outros prisioneiros que escaparam dos mesmos presídios e de alguma maneira comprovaram estes casos de morte. A organização entrevistou também dois exilados sírios que trabalhavam em dois centros de detenção em Damasco, assim como com uma enfermeira de um dos hospitais militares onde morreram alguns dos casos analisados.

Foram investigados também documentos prisionais enviados por dissidentes do regime, que, assegura, comprovam as práticas descritas por "César" – a uma equipa de peritos contratados pelo Qatar, a um jornalista e, mais tarde, ao Congresso norte-americano. Partilhou também as 72 fotografias dos 27 mortos identificados com a organização humanitária Médicos para os Direitos Humanos, especializada em medicina forense. “Encontraram provas de traumas de violência extrema, asfixia, fome e, num dos casos, de um tiro na testa”, lê-se no relatório publicado esta quarta-feira.

“Em algumas das fotografias analisadas pela Human Rights Watch e Médicos para os Direitos Humanos, os prisioneiros evidenciam grandes ferimentos cranianos expostos, ferimentos de bala e sangue expelido por orifícios corporais. Muitas das fotografias são de corpos macilentos, com marcas de tortura”, explica a organização. Um dos médicos consultados pela Human Rights Watch investigou as mais de 28 mil fotografias de prisioneiros mortos e chegou à conclusão que mais de 40% tinham passado fome: “Exibiam os tórax muito definidos, os ossos pélvicos proeminentes e faces encavadas."

A investigação da Human Rights Watch chegou a uma lista das causas mais comuns para a morte de prisioneiros em edifícios do regime de Assad. Quase todas devem-se à falta de cuidados médicos e violência: “Tortura; Infecções gastrointestinais, algumas vezes envolvendo diarreia extrema e desidratação; doenças cutâneas que acabam infectadas; perturbações psiquiátricas que fazem com que os prisioneiros deixem de comer e beber; e doenças crónicas para as quais os detidos não receberam os cuidados e tratamentos médicos necessários.”

“Padrões sistemáticos”
Não é a primeira vez que se revelam detalhes sobre os “padrões sistemáticos” de tortura, privação e homicídios nas prisões do regime sírio. A máquina do Estado fazia-o já antes sob comando de Hafez al-Assad, pai do actual Presidente. Mas as 55 mil fotografias que “César” conseguiu retirar do país – com a ajuda da oposição exilada na Turquia e apoiada por países do Golfo Pérsico– são até agora a prova mais extensiva, irrefutável e bem documentada dos “crimes de guerra” de que é acusado o Governo sírio.

“Verificámos meticulosamente dezenas de histórias e estamos certos que as fotografias de César são provas autênticas e cabais de crimes contra a humanidade na Síria”, escreve Nadim Houry, o vice-presidente da organização humanitária para o Médio Oriente e Norte de África.

As imagens de "César" já haviam sido analisadas por três peritos, a convite do Qatar, que apoia o Movimento Nacional Sírio (no qual se integra a Coligação Nacional Síria). Foram consideradas então “provas claras” do “assassínio a uma escala industrial” às mãos do Governo. A Human Rights Watch dá-lhe um novo crivo de autenticidade – já depois de, nos Estados Unidos, o FBI ter garantido que as imagens não foram manipuladas. Dá igualmente o relato de oito dos casos investigados, os únicos para os quais recebeu autorização das famílias. Muitas temem ainda a perseguição do regime.

As fotografias de “César” foram publicadas pelo Movimento Nacional Sírio em Março deste ano. Só então centenas de famílias sírias puderam procurar os seus familiares desaparecidos – só em alguns casos o regime admite as detenções e é mais raro ainda comunicar as mortes às famílias. Mais de 700 famílias entraram em contacto com a organização oposicionista para lhes dizerem terem encontrado parentes seus nas imagens de “César”.

“Foi o choque da minha vida”, explica Dahi al-Musalmani, que encontrou o seu sobrinho, Ahmed, de 14 anos, nas fotografias. Falou com a Human Rights Watch. “Procurei-o durante 950 dias. Antes de a sua mãe morrer, ela disse-me: ‘deixo-o na tua protecção.’ Que protecção lhe poderia eu dar?”

As imagens recolhidas por “César” são apenas de uma parte das pessoas que morreram nos edifícios do regime. O fotógrafo operava apenas em alguns locais de Damasco e recebeu corpos de um número restrito de prisões e departamentos dos mukhabarat (nome dado na Síria aos quatro serviços de informação do Estado). “Estas fotografias representam uma ínfima parte das pessoas que foram mortas enquanto estavam detidos nas celas sírias. Milhares de outros tiveram o mesmo destino”, explica Nadim Houry.

Correcção 18h26: Uma versão anterior desta notícia indicava incorrectamente que Dahi al-Musalmani encontrara o noivo nas fotografias, e não o seu sobrinho, como relatou. 

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