Da Magna Carta à democracia moderna

Entre os povos de língua inglesa, nem o despotismo nem a revolução foram necessários para alcançar a democracia moderna.

Terminou no sábado passado a exposição alusiva à Magna Carta no Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Um original de 1217, pertencente à Catedral de Hereford, esteve no centro da exposição, com a presença do Chanceler da Catedral. O ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, Philip Hammond, deputado pelo círculo de Runnymede (onde a Carta foi selada, em 1215) esteve também na Torre do Tombo.

A Magna Carta e o seu legado político captaram a imaginação de inúmeras gerações de anglófilos na Europa. Em França, por exemplo, gerações sucessivas de grandes intelectuais – como Montesquieu, Benjamin Constant, Guizot, Tocqueville, Élie Halevy ou Raymond Aron – estudaram detalhadamente a tradição britânica de liberdade ordeira. Observaram a propensão da França para o eterno conflito entre revolução e contra-revolução, lamentando que a chamada “Pátria das Luzes” não tivesse conseguido reproduzir o chamado “milagre da Inglaterra moderna”, uma frase cunhada por Élie Halevy.

Este milagre não residiu apenas, nem mesmo sobretudo, no facto de a Inglaterra ter sido poupada à revolução desde 1688. Como recordou a historiadora norte-americana Gertrude Himmelfarb, “o verdadeiro milagre da Inglaterra moderna não está em ter sido poupada à revolução, mas em ter assimilado tantas revoluções – industrial, económica, social, política, cultural – sem recorrer à Revolução.”

Na Oxford History of Western Philosophy, Anthony Quinton reconheceu esta especificidade da cultura política de língua inglesa com um olhar original. Afirmou que “o efeito da importação das doutrinas de John Locke em França foi muito semelhante ao do álcool em estômago vazio.” Lord Quinton acrescentou que em Inglaterra os princípios de Locke “serviram para sancionar uma ampla revolução conservadora [em 1688] contra a inovação absolutista”, enquanto que em França [em 1789] a importação das ideias de Locke conduziria ao radicalismo da revolução francesa.

Um factor explicativo para este fenómeno pode precisamente residir no papel que a Magna Carta desempenhou na cultura política dos povos de língua inglesa. As ideias de John Locke no século XVII, entendidas no continente como revolucionárias, foram em Inglaterra ancoradas na tradição da Magna Carta do século XIII. Por outras palavras, em Inglaterra, o princípio do governo limitado não foi entendido como inovação revolucionária dos séculos XVII e XVIII, mas como redescoberta e restauração da “velha constituição” simbolizada pela Magna Carta de 1215. Por esta razão, também a democracia moderna não foi entendida entre os povos de língua inglesa como uma ruptura com o passado, mas apenas como uma gradual adaptação a novas circunstâncias.

Pelo contrário, na Europa continental, a democracia moderna foi apresentada como expressão política de um projecto racionalista dogmático (por contraposição ao que Karl Popper designou por “racionalismo crítico”). Por outras palavras, enquanto que em Inglaterra e na América a democracia moderna emergiu gradualmente como protecção dos modos de vida existentes, na Europa continental a democracia foi associada a um projecto de alteração dos modos de vida existentes com vista a atingir o “modelo” de uma sociedade outra, desenhada pela “Razão”. Esta atitude adversarial resulta principalmente do facto de esses modos de vida já existirem há muito. Estão fundados no hábito, ou na tradição, ou na conveniência, ou em “attachments” particulares. Numa palavra, eles não foram desenhados pela “Razão”.

Em suma, entre os povos de língua inglesa, nem o despotismo nem a revolução foram necessários para alcançar a democracia moderna. Em grande parte, porque a Constituição inglesa (não escrita) permaneceu ancorada na tradição da Magna Carta. Winston Churchill resumiu esse gradualismo britânico na expressão corrente de ouro, a propósito da filosofia política de seu pai:

“[Lord Randolph Churchill] não via razão por que as velhas glórias da Igreja e do Estado, do Rei e do país, não pudessem ser reconciliadas com a democracia moderna; ou por que razão as massas do povo trabalhador não pudessem tornar-se os maiores defensores destas antigas instituições através das quais tinham adquirido as suas liberdades e o seu progresso. É esta união do passado e do presente, da tradição e do progresso, esta corrente de ouro, nunca até agora quebrada, porque nenhuma pressão indevida foi exercida sobre ela, que tem constituído o mérito peculiar e a qualidade soberana da vida nacional inglesa.”

Professor universitário, IEP-UCP

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