O nosso ovni na cidade

Nestes dias de luzes a piscar, carrosséis barulhentos, sacos de compras e crianças de gorros a tentar deslizar em pistas de gelo, é para a Casa da Música que se olha para respirar fundo.

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Ela não tem nada que ver com nada. É senhora do seu nariz, solitária na sua estranheza, única num corpo que parece disforme, mas é, afinal, perfeito. Olha-se e pensa-se que lhe assenta como uma luva o slogan publicitário criado por Fernando Pessoa para uma bebida gaseificada: primeiro estranha-se, depois entranha-se. O Porto já não seria o mesmo sem a sua Casa da Música.

É esquisita, torta, um paralelepípedo deselegante, um ovni na cidade, um pedaço de pedra pesado e cinzento enfiado no início de uma das avenidas nobres do Porto, a da Boavista. É isto e não é nada disto. É estranhamente cativante, elegante, leve como uma pluma na forma como assenta ali ao lado da rotunda da Boavista, uma moça tímida e ao mesmo tempo altiva, quando um pedaço da sua enorme massa acinzentada espreita entre prédios ou árvores. E lá dentro, senhores, lá dentro ela é muito mais do que isso.

A Casa da Música desdobra-se em espaços únicos, com uma identidade muito própria. A simplicidade das salas de ensaio, com enormes espelhos e tectos altos, a elegância do restaurante, os acessos futuristas, a beleza da janela e balcões da Sala Suggia, a jovial esplanada, com os grandes azulejos a preto e branco. Eu, que nunca fiz uma visita guiada à casa — apesar de andar a dizer, há anos, que hei-de fazê-la —, tenho tido a sorte de a ir conhecendo aos pedaços, como espectadora ou em trabalho. E ela, o patinho feio mal-amado da Porto 2001 — Capital Europeia da Cultura, tornou-se, quase sem dar por isso, no mais consensual dos seus feitos. Quem critica hoje a sua existência, apesar da brutal derrapagem orçamental (dos 35 milhões previstos, ultrapassou os 111 milhões) e temporal (não foi inaugurada em 2001, mas apenas em 2005)?

A cada espectáculo, a cada iniciativa do seu departamento educativo, a Casa da Música soube ir ganhando, serena, o afecto dos portuenses. Eles adoptaram o seu interior, enchendo-lhe as salas, e afeiçoaram-se ao seu exterior, com os jovens de skate a ocupar as rampas em torno do edifício. E, agora, quando o Natal se aproxima e a rotunda está transformada num parque de diversões colorido e barulhento, ela é o local para onde nos voltamos à procura de alguma normalidade. O garante de que, quando as festas passarem, tudo há-de voltar ao seu lugar.

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Dez anos depois da sua inauguração, 16 depois do início dos trabalhos preparatórios, não tenho dúvidas de que muitos portuenses se acorrentariam aos seus portões (se estes existissem) caso alguém sonhasse, sequer, em tirar-lhes a casa de espectáculos da Boavista. Mesmo que muitos nunca lá tivessem entrado. Porque a Casa da Música ganhou, facilmente, direito à expressão mais calorosa que um portuense pode ter com algo (ou até alguém): ela é nossa, carago!

Agora que a cidade se transforma para receber as festas do final do ano, é bom ver que ela continua imutável, senhora do seu nariz, sem penduricalhos nem luzes extra, com as suas paredes limpas e janelas em sítios improváveis. Rem Koohlaas, o arquitecto holandês que a projectou, sabia, sem dúvida, o que fazia, mesmo quando quase todos desconfiavam do monstro que crescia ali na cidade, tão diferente de tudo o que o rodeava.

Nestes dias de luzes a piscar, carrosséis barulhentos, pessoas carregadas de sacos de compras e crianças de gorros a tentar deslizar em pistas de gelo, é para a Casa da Música que olho para respirar fundo, enquanto tento atravessar a rotunda. E eu gosto da confusão do Natal, gosto mesmo. Mas todos temos de respirar fundo de vez em quando. Fechar os olhos e pensar que os sonhos podem ter outra dimensão. Não têm de ser todos feitos de cores e luzes. Tal como a Casa da Música, alguns podem ter uma capa monocromática e esconder cores e texturas inimagináveis a quem apenas raspa a superfície. E as músicas que se ouvem lá dentro, as músicas de que não falei mas que são a razão da existência da Casa da Música, podem ser verdadeiramente sublimes.

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