Frank Sinatra, esse ilustre desconhecido

Sinatra: The Chairman é o segundo volume da biografia de Frank Sinatra que o jornalista e escritor James Kaplan iniciara em 2010 com Frank: The Voice. Os dois volumes revelam-nos Sinatra tão profundamente como nunca. Na celebração do seu centenário, poderemos finalmente conhecê-lo.

Frank Sinatra, esse ilustre desconhecido

Este sábado, será difícil encontrar um clube em Nova Iorque que não lhe dedique a noite. Em Las Vegas, tudo está montado, com os espaços onde actuou, os restaurantes onde comeu e os bares onde bebeu a assinalarem a data. Os Grammy já lhe prestaram homenagem no último domingo, com o habitual concerto de celebração em que nomes de hoje, como Lady Gaga, John Legend ou Usher, se juntaram a um contemporâneo como Tony Bennett ou a um comediante como Seth MacFarlane para interpretar os clássicos.

Há edições comemorativas em CD e DVD, temos a RTP2 a dedicar-lhe o mês de Dezembro, exibindo aos domingos alguns dos filmes que protagonizou (Um Dia Em Nova Iorque é o próximo) e, por todo o mundo, este fim-de-semana será o fim-de-semana de Frank Sinatra, que completaria cem anos a 12 de Dezembro.

Muito se escreveu, muito se discutiu e muito se especulou sobre aquele que é o nome maior da música e do espectáculo do século XX. Todos conhecem a história tão apelativa, tão americana, do homem que atinge a glória nos anos 1940, apenas para ser dado como acabado quando a década se aproximava do fim, antes de renascer surpreendentemente, maior do que alguma vez tinha sido. Todos lhe reconhecem a voz, maior que todas as outras, o talento absolutamente excepcional na interpretação, as colaborações determinantes com compositores, orquestradores e letristas como Nelson Riddle, Gordon Jenkins, Sammy Cahn ou Jimmy Van Heusen. Há o lendário Rat Pack de Sammy Davis Jr, Dean Martin ou Peter Lawford, de que era líder incontestado, símbolo máximo da “coolness” de uma vida sem regras. Há as muitas mulheres que atravessaram a sua vida (Nancy Barbato, Lana Turner, Judy Garland, Ava Gardner, Lauren Bacall, Marilyn Monroe, Mia Farrow). Há um século, o XX, vivido quase na totalidade sob a sua influência.

E, no entanto, recuamos a 1958, ao texto de apresentação de um dos seus discos mais prezados, Only the Lonely e lemos: “O Frank Sinatra que conhecemos e que temos conhecido (e que quase não conhecemos) é um artista com tantas formas e padrões quantos podem ser encontrados num caleidoscópio para crianças”. Todos sabemos de Frank Sinatra. Porém, pouquíssimos poderão dizer que o conhecem realmente. O jornalista e escritor James Kaplan, que dedicou os últimos dez anos da sua vida a Sinatra, é uma dessas raras pessoas que pode afirmar que o conhece – mesmo nunca tendo privado com ele.

Em 2010, publicou Frank: The Voice (Doubleday), que lhe acompanha o percurso desde o nascimento a 12 de Dezembro de 1915 em Hoboken, New Jersey, filho de dois imigrantes italianos, até ao renascimento confirmado com o Óscar ganho em 1953 pelo inesquecível Maggio de Até à Eternidade. Agora, chega Sinatra: The Chairman (Doubleday), novo tomo imponente nas suas mais de oito centenas de páginas que segue o Frank que cresce em poder e influência, que perde a candura, que se cristaliza para a posteridade na memória colectiva.

Best-sellers e alvo de um sucesso crítico esmagador, os dois volumes da biografia escrita por Kaplan, sem edição portuguesa, terão o melhor elogio neste simples facto: depois deles, quaisquer outras tentativas de abordar a vida de Frank Sinatra estarão condenadas ao fracasso. Serão redundantes perante a forma, literária como um policial, informativa e analítica como as melhores reportagens, através da qual The Voice e Chairman nos coloca no tempo, no espaço e na cabeça de Sinatra e dos tantos que o rodearam ao longo da vida terminada, culpa de um ataque cardíaco, a 14 de Maio de 1998.

Ler os dois livros de Kaplan, enquanto na aparelhagem rodam “Songs For Swinging Lovers” ou “September of my Years”, talvez seja a maior homenagem a fazer a Sinatra no ano do seu centenário. Para conhecermos, finalmente, este homem “ de uma profunda sensibilidade que era incapaz de manter uma relação íntima relevante com outro ser humano” (é Kaplan a citar ao Ípsilon a filha mais nova de Sinatra, Tina), este artista, considera o autor, “cujas capacidades musicais estão a um nível mozartiano”.

Em 2004, ao mergulhar no universo de Frank Sinatra, James Kaplan percebeu rapidamente uma coisa. “Quando comecei o primeiro volume, não sabia nada sobre ele”, confessa. “Ou melhor, sabia o que toda a gente sabe, mas muito do que toda a gente sabe está errado”. Foi por aí que começámos.

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Diz que ao investigar a vida de Sinatra, apercebeu-se que muito do que as pessoas sabem sobre a sua vida está errado. Em relação a que é que andamos enganados?
Há um par de equívocos que destacaria. Primeiro, a ligação à Mafia. Sinatra é muitas vezes retratado como um mafioso verdadeiro. Como cidadão europeu, conhecerá bem a noção de "melting pot" e estará consciente da dificuldade que implica juntar pessoas de diferentes origens a conviver num mesmo país. Na América do início do século XX tínhamos diversos grupos étnicos, os afro-americanos, os irlandeses-americanos, os italo-americanos, os judeus americanos, num país que era dominado por anglo-saxões brancos protestantes. Nessa altura os italo-americanos estavam muito abaixo na escala social e Sinatra sentiu profundamente essa condição. Quando começou a actuar nos clubes nocturnos deparou-se com a máfia, porque era ela que detinha e geria os clubes, e viu aqueles homens como italo-americanos com poder. Idolatrava-os por isso, mas fazia-o da mesma forma que um miúdo idolatra cowboys ou heróis do desporto. Idolatrou-os até ao fim da vida e gostava de passar tempo com eles, o que não significava que fizesse negócios com eles, o que não significava que fosse ele mesmo um mafioso.

E o segundo equívoco?
O Rat Pack, um mito muito poderoso e, admito, muito sedutor. O da masculinidade, o da vida sem consequências: podemos ficar a pé até às horas que quisermos, podemos ter tantas mulheres quantas quisermos, podemos beber e fumar quanto quisermos, podemos dizer o que bem entendermos. Tudo isto surge bem explícito no filme Oceans 11 [1960]. É um filme muito mau, mas também encantador numa série de aspectos, caso contrário não teria inspirado os remakes, que, na minha opinião, são todos melhores que o original. O original, porém, dá um melhor mito, o de que aqueles homens formavam um clube de cinco gajos sempre na noite, a beberem e a divertirem-se. A história é muito mais complexa. Na verdade, não passavam assim tanto tempo juntos. Na verdade, Dean Martin não gostava de ficar acordado até de madrugada porque queria levantar-se cedo para jogar golfe. E havia em intervalos regulares muito maus fígados entre Sammy Davis Jr. e Frank Sinatra. Depois Frank Sinatra cortava totalmente com Sammy Davis, que regressaria ajoelhado e a implorar perdão. Há também o facto de Frank Sinatra não respeitar Peter Lawford de todo. Só o mantinha por perto por ser cunhado do Presidente dos Estados Unidos [John Kennedy]. Quando vemos o Rat Pack nos vídeos do YouTube, o humor não se aguenta. Era humor alcoólico, na verdade. Muito do seu tempo, o início dos anos 1960. Tão racista, tão misógino. É difícil vê-lo hoje em dia. O mito sobrevive porque é realmente muito sedutor, mas é um mito oco no seu âmago.

A empatia de Sinatra com a máfia, dominada por italo-americanos, nasce da proximidade que tinha com aquelas figuras. A sua oposição à segregação racial e a sua condenação do racismo quando mais ninguém do mundo do espectáculo o fazia, nascerá também dessa vivência próxima com a comunidade afro-americana e seus artistas?
Ele sentia que Louis Armstrong, Lester Young, Count Basie, Duke Ellington ou Coleman Hawkins não eram simplesmente génios musicais, mas também homens que agiam e se movimentavam com um certo sentido de nobreza. Tanto estilo, tanta verve, tanta elegância. Sinatra percebeu-o imediatamente. Ele sentia e sabia quão absurdo era o racismo, especialmente a partir do momento em que conhece e convive com aqueles músicos.

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Bettmann/ CORBIS

É determinante perceber o contexto de Hoboken, onde Sinatra nasceu, e Nova Iorque, que o formou enquanto músico, para conhecer verdadeiramente o homem e o artista?
Eu cresci em New Jersey, nos subúrbios, e Sinatra cresceu em Hoboken, a que chamavam a ‘mile square city’ [cidade do quilómetro quadrado] por ser tão pequena. Sinatra viveu lá quando diversos grupos étnicos tinham sido para ali atirados numa convivência instável. Se um rapaz italo-americano se aventurasse no bairro errado, no dos irlandeses, por exemplo, poderia acabar espancado. É extraordinariamente importante conhecer esse contexto. É importante perceber o que era a Nova Iorque nos anos de 1930, 1940, 1950 e 1960 e as transformações contínuas que foi sofrendo. Quando o jovem Sinatra começou a ir para Nova Iorque desde Hoboken, com 21 anos, apanhava o ferry que atravessava o rio Hudson e, já em Nova Iorque, percorria a 52nd Street. Hoje, toda ela é feita de grandes edifícios de escritórios, horríveis prédios envidraçados e sem rosto. Naquela altura, sucediam-se os brownstones, pequenos prédios de apartamentos com fachadas de rocha castanha que acolhiam clubes de jazz na cave, uns a seguir aos outros. Sinatra via Teddy Wilson, Count Basie, Duke Ellington, Lester Young, Coleman Hawkins e, acima de todos, Billie Holiday. Tinha a mesma idade que ele, mas tornou-se famosa muito mais cedo. Sinatra estava absolutamente maravilhado com o génio daquela jovem mulher. Para compreender Sinatra, para além dessa Nova Iorque que já não existe, temos também que olhar para Hollywood nos anos 1940 e 1950 e perceber as mudanças que sofreu nesse período. O mesmo em relação a Las Vegas. Howard Hughes chegou em 1967, comprou os casinos, um a um, e começou a conduzir a máfia, que geria os casinos, para fora da cidade. Isso tornou a cidade muito diferente. Começou a transformar-se na máquina de entretenimento corporativa que é hoje. Quando Sinatra cantava no Sands Casino and Hotel, Las Vegas era um sítio muito diferente.

Será possível ler a sua vida de glórias e atribulações e as suas reacções temperamentais aos altos e baixos que atravessou através da sua condição primeira, a de filho único de uma minoria discriminada, lutando para ser bem-sucedido quando, aparentemente, tinha tanto contra si?
Nietzsche disse que o filho é o pai do homem e isso era muito correcto em relação a Sinatra. Pelos seus antecedentes étnicos e familiares, era um homem tremendamente inseguro, hipersensível, e consciente dos seus extraordinários dons musicais desde muito cedo. Ora, ser hipersensível e um músico incrivelmente dotado não eram qualidades propriamente prezadas junto dos seus companheiros em Hoboken. O que era prezado acima de tudo era capacidade de ser duro, uma rudeza e masculinidade muito valorizada nos meios em que Sinatra se movia. Por isso, tentava esconder essas suas qualidades com bravata. Além disso, era italo-americano e vivia numa América que o forçava a sentir essa condição como inferior. Apesar de todo o poder que conquistou, de toda a riqueza que acumulou, carregou esses sentimentos consigo até ao fim dos seus dias. Era por isso, aliás, que sentia a humilhação de uma forma tão aguda. A humilhação era, para Sinatra, a pior de todas as coisas.

The Voice e The Chairman formam o mais completo, complexo e exaustivo olhar sobre a vida de Sinatra que conhecemos até hoje. Que aspectos menos abordados, ou sob os quais incidia menos luz, procurou aprofundar? Dedica grande espaço, por exemplo, à sua relação com John Kennedy.
Queria olhar para esse encontro com toda a atenção. Fascinava-me a forma como aqueles dois homens se encontraram, cinco anos antes de Kennedy se tornar presidente, quando ainda era muito jovem. Kennedy tinha 38 anos em 1955, quando se conheceram num evento de angariação de fundos para os Democratas em Los Angeles. Foi amor à primeira vista para ambos, mas tinham objectivos diferentes. Frank Sinatra cresceu com fortes convicções políticas liberais, idolatrando Franklin D. Roosevelt e o partido Democrata. Idolatrava também quem demonstrava classe. Vinha de um meio marcadamente de classe operária e quando se deparava com alguém com educação superior, ou oriundo de uma classe social mais elevada, ficava deslumbrado. John Kennedy deslumbrou-o. Tinha tanto carisma, tanto estilo, tanta inteligência. Tinha frequentado Harvard, tinha convivido com estrelas de Hollywood e era ele mesmo uma estrela. Kennedy, por seu lado, ficou também deslumbrado com Sinatra. Desde muito novo que Kennedy começou a passar muito tempo em Hollywood, porque o seu pai tinha sido sócio dos estúdios RKO. Começou a frequentar Hollywood no início dos anos 1940, começou a passar muito tempo com mulheres bonitas. Ele adorava mulheres bonitas e o seu casamento com Jacqueline Bouvier em 1953 não alterou isso. Mas John Kennedy teve uma percepção inovadora da relação entre showbusiness e a política. Compreendeu-o de uma forma que nenhum outro político antes dele tinha compreendido. Via Sinatra como a essência do que era a celebridade de Hollywood e como um homem constantemente rodeado de mulheres bonitas, certamente carismático.

Como é que esse Sinatra, homem de esquerda, ferozmente Democrata, investigado por simpatias comunistas durante o Maccarthismo, se transforma em conservador apoiante do Partido Republicano?
Tudo começou com a terrível humilhação na Primavera de 1962. Havia uma jovem mulher chamada Judith Campbell. Sinatra conhecera-a em Las Vegas e apresentou-a a John Kennedy, quando Kennedy começou a assistir a alguns dos espectáculos do Rat Pack no Sands no início da década de 1960. Na mesma altura, Frank Sinatra também apresentou Judith Campbell ao seu bom amigo Sam Giancana, cabecilha da máfia de Chicago. Portanto, Judith Campbell estava a ter um caso com o Presidente dos Estados Unidos e com o cabecilha da máfia de Chicago. Robert Kennedy, o Procurador-Geral dos Estados Unidos e irmão de John Kennedy, foi informado da situação por J. Edgar Hoover, o líder do FBI, e soube que, no Verão de 1962, John Kennedy andava a passar algum tempo com Sinatra na casa deste em Palm Springs. Robert Kennedy disse ao seu irmão que isso teria que acabar. Acontece então que John Kennedy acaba por escolher passar uma temporada [planeada com Sinatra, que tinha remodelado a sua casa para o receber] em casa de Bing Crosby, em Palm Springs. Sinatra sentiu essa rejeição como uma gigantesca humilhação. Isso foi o início [da mudança para o Partido Republicano]. Em 1968, quando o democrata Hubert Humphrey entrou na campanha para a presidência, Sinatra trabalhou com ele, mas os conselheiros de Humphrey acharam que não seria aconselhável tê-lo por perto, devido às amizades com a máfia. Mas temos que recordar que isto aconteceu em 1968, um ano de tumulto político por todo o mundo, com o Vietname, com os Estados Unidos a viverem em tumulto. Frank Sinatra já tinha mais de 50 anos e toda aquela violência e turbulência assustavam-no. Começou quando fez campanha por Ronald Reagan para governador da Califórnia. Os seu amigos liberais ficaram horrorizados: “Como é que podes apoiar este gajo?”. Sinatra respondeu-lhes que iria fazer o que bem entendesse. E acabou por se tornar republicano.

Sinatra atravessou o século XX e esteve ligado a muitas das personalidades e acontecimentos que o marcaram nos Estados Unidos. Mas não será correcto afirmar que ele é um filho do mundo pré-rock’n’roll, anterior às transformações culturais e sociais da década de 1960, e que foi “apenas” a sua dimensão única enquanto artista e ícone que lhe permitiu sobreviver, intocado, no espaço mediático e na memória colectiva?
Sinatra detestava rock’n’roll. Sentia-se extremamente desconfortável com ele e com o que significava, com os anos 1960, com a contracultura e os protestos. Detestava tudo isso. Gravou alguma dessa música, mas fracassou sempre. A sua grande força estava nos grandes standards, na música de Cole Porter, Irving Berlin, Rodgers and Hart, Rodgers and Hammerstein, Sammy Cahn e Jimmy Van Heusen. Julgo que ele compreendeu tudo isso muito bem, daí se ter reformado brevemente em 1971. Claro que depois não suportou a reforma, porque, afinal, o mundo precisava de Sinatra. Quando regressou [em 1974], a sua carreira tornou-se bastante diferente. Hoje em dia os músicos sabem que não conseguem fazer dinheiro com as gravações, mas fazem-no com as digressões. O Sinatra percebeu isso em 1974. Reconverteu-se em artista de concerto e voltou à música que o fizera grande e que ele fizera grande, a música do grande cancioneiro americano. Foi realmente a sua extraordinária dimensão enquanto artista que lhe permitiu sobreviver, e é ela que o mantém presente até hoje.

Sinatra estabeleceu, de certa forma, a ideia do artista como celebridade maior que a arte em que primeiro se notabilizou. Era cantor, mas foi também, por exemplo, estrela de cinema.
Bing Crosby é que criou esse modelo. Foi inteligente o suficiente para perceber que, se se tornasse uma estrela de cinema, isso iria ajudar a sua carreira musical. Iria ajudá-lo a vender discos e iria torná-lo mais famoso. Frank Sinatra seguiu esse modelo. Não gostava particularmente de fazer filmes, era um homem demasiado impaciente para o apreciar, mas sabia que o cinema poderia torná-lo uma estrela ainda maior.

Depois dos anos dos musicais ao lado de Gene Kelly, Sinatra revelou-se um actor de corpo inteiro em Até à Eternidade ou O Homem do Braço de Ouro. Porém, rapidamente passou a utilizá-lo como mero veículo para publicitar a “marca” Sinatra. O cinema deixou de ser um desafio para ele e, consequentemente, de lhe interessar enquanto arte?
Era um grande desafio, mas era um desafio que não estava muito disposto a enfrentar. Quem já passou algum tempo numa rodagem sabe que é um processo incrivelmente aborrecido, como ver tinta secar numa parede. Sinatra era um homem patologicamente impaciente. Se estivesse parado muito tempo, perdia a compostura. Trabalhar em cinema enlouquecia-o. Além disso, quando se deparava com um realizador que não respeitava, trabalhava tão pouco quanto lhe apetecesse, chegava ao set tão tarde quanto lhe apetecesse e só fazia um take de cada cena. Como resultado, temos uma longa lista de filmes medíocres. Mas quando respeitava o realizador, como Fred Zinnemann, de Até à Eternidade, Otto Preminger, em O Homem do Braço de Ouro, ou o grande John Frankenheimer, de O Enviado da Manchuria, dava o seu melhor.

É tentador afirmar que, antes de rodar qualquer filme, já era actor. Fazia questão de descrever exaustivamente aos seus orquestradores o contexto das canções e o cenário em que elas decorriam. Depois, ao cantá-las, estava a pôr-se em cena.
Nele, cantar era representar. A Rachel Welch contou-me uma história que  se passou com Elia Kazan, um realizador maravilhoso. Elia Kazan detestava Sinatra. Não gostava da forma como cantava e considerava-o um péssimo actor. A Rachel Welch levou-o  a um concerto em Miami, nos anos 1960. Kazan sentou-se e, depois de ouvir Sinatra cantar, exclamou: “Meu Deus, retiro tudo o que disse. O homem é um génio. E um grande actor”. Sinatra tinha essa qualidade rara, senão única, entre os cantores: levar-nos a acreditar que está a sentir aqueles sentimentos e a ter aqueles pensamentos no exacto momento em que os canta. Isso é grande representação.

Algo que atravessa a sua biografia é a imagem de Sinatra como alguém impaciente, eternamente insatisfeito, incapaz de serenar e sentir felicidade genuína. Só na música, gravando-a ou interpretando-a ao vivo, parecia sentir-se realizado.
Sinatra podia sentir-se feliz quando a noite ia alta, sentado e rodeado por amigos, a beber e a contar piadas indecentes, mas julgo que só se sentia feliz e em paz consigo mesmo quando cantava, aliás, só quando cantava maravilhosamente. Era um crítico musical muito severo, em especial no que dizia respeito à sua voz. Quando estava a cantar exactamente como desejava, sentia-se em paz. No resto do tempo, ou seja, em 85 por cento da sua vida, tudo era tumulto.

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CHARLES GRANATA

Porém, todo esse turbilhão foi determinante para a criação dos momentos mais sublimes da sua carreira, álbuns como In the Wee Small Hours ou Only the Lonely, assombrados por Ava Gardner, a relação determinante na sua vida. Sem ela, nunca teríamos o “poeta laureado da solidão”.
Era uma relação condenada e acho que ambos o sabiam. De certa forma, foi isso que tornou a relação tão romântica e sedutora para os dois. Eram como uma fórmula química instável, dois elementos que nunca conseguiam ligar-se verdadeiramente. Eram demasiado parecidos para o conseguirem e estabilizarem. O outro era sempre um ideal romântico esquivo. Ela trouxe-lhe muita tristeza, tal como ele a ela. A diferença é que Ava Gardner conseguia esquecer mais facilmente que Sinatra. Era tão inquieta quanto ele, mas conseguia esquecer mais facilmente. Ele via-a mais romântica do que Ava era na realidade.

Sinatra conseguiu tudo o que ambicionava ao sair de Hoboken para Nova Iorque. Sucesso e respeito, poder e dinheiro, as mais belas mulheres e o apreço dos grandes músicos. Ainda assim, referia-se habitualmente ao início, quando dormia em sofás e tiritava de frio no autocarro das bandas de Harry James e Tommy Dorsey, como o período mais feliz da sua vida.
Foi até ao fim da vida muito nostálgico em relação a esse período. Era um homem terrivelmente solitário, ainda mais pela sua incapacidade de alimentar relações de intimidade. Quando integrava as bandas de Harry James e de Tommy Dorsey, fazia parte de uma equipa. Viajava no autocarro com os seus companheiros, saía com eles todos os dias, estava a aprender o seu ofício. Tinha ainda tudo à sua frente. Não é surpreendente que se sentisse nostálgico por esses dias da sua juventude adulta. O terrível em The Chairman é ser muito mais duro e negro que The Voice, porque é sobre poder e sobre um homem que se transforma em Rei Midas. Tudo aquilo em que toca transforma-se em ouro, mas ele não consegue comer a comida que tem à sua frente, não consegue beijar a sério uma mulher, não consegue verdadeiramente sentir a vida. Quando estava com Harry James e Tommy Dorsey tudo isso estava ainda no futuro e Sinatra via-o como uma cidade muito atraente, toda iluminada, brilhando na distância.

Temos a vida glamorosa, os discos, os filmes, as canções que se tornaram standards cantados em dezenas de línguas, o estatuto de ícone máximo do “entertainment”. Temos tudo isso, mas é isso que justifica ser o único cantor da sua geração a manter-se tão presente e com tanto impacto década após década?
Julgo que tudo nos conduz à sua voz. Podemos falar do seu incrível controlo de respiração, que aprendeu com o Tommy Dorsey – costumava fazer voltas debaixo de água na piscina para aumentar a sua capacidade pulmonar. Podemos falar do belíssimo fraseado que aprendeu com Billie Holiday. Podemos falar da sua reverência pelas letras e pela devoção com que as estudava, mas, feitas as contas, sobra esta coisa misteriosa que nos faz ficar com pele de galinha ao ouvi-lo. Não é traduzível, não é uma questão intelectual, é físico. Transcende a linguagem e acredito que transcenderá o tempo. Quando daqui a séculos ouvirem aquela voz, as pessoas continuarão a reagir como a nenhuma outra. 

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