Sentimental para além do bem e do mal

Os teus sentimentos são as tropas imortais montadas a elefante do Império Persa. São eles que abrem as portas da intimidade e atiram para o fundo do mar cadeados e ferrolhos

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Os teus sentimentos. Não acredites neles. Adormece-os antes que te ponham a dormir. Antes que te enganem e transformem os ossos em gelatina. Antes que não possas dar um passo sequer, leva-os ao tapete com um murro valente. Sem piedade, agora. Dá-lhes! Isso. Antes que o nevoeiro se adense e te envolva dos pés à cabeça, estica o pescoço e olha em volta enquanto podes. Vê o que está lá e não o que desejas, ri-te da verdade. Agora saca da arma e prepara-te para disparar, antes que sejas tu na mira. Oferece a tua cara de canalha sorridente ao cartaz dos mais procurados. Se o teu crime foi duvidar de ti própria miúda, que o seja, tu ganhas. Contra ti própria, mas ganhas. Ninguém te pode apanhar, porque tu não existes. És um nome que fica, uma história contada de cem maneiras diferentes, sempre por cumprir. Pega no teu manto diáfano e deixa-os à deriva. Que morram à sede ou se afoguem. Quando o coração dispara, cada um sabe de si e o teu não cabe no bolso pequeno de quem dele precisa. Esses sentimentos são uma miragem, sabes bem que se tingem em sangue mais cedo do que tarde. São flores de jasmim carnívoras. Mal mostres que sabes pensar, mal percebam que podes reinar. Fazem-te juras de morte nas costas, basta dizeres a palavra mágica não. És executada por traição ao trono, mas como és realeza podes escolher o método. Envenenamento das aparências, asfixia pela indiferença ou afogamento com o quotidiano? Escolhe nenhuma das anteriores e pira-te, não queres nem precisas que precisem de ti. Uma coisa é certa, estes sentimentos não te sobreviverão.

Os teus sentimentos. Segue-os como uma sonâmbula ou uma criança crédula. Deves-lhes muito, quase tudo. Por causa deles consegues sonhar acordada, ter uma fé despropositada na humanidade e adorar viver como nunca. Os teus sentimentos são as tropas imortais montadas a elefante do Império Persa. São eles que abrem as portas da intimidade e atiram para o fundo do mar cadeados e ferrolhos. São eles que acordam o teu poder de girar coreografias inéditas num corpo novo. São quem te faz sentir compaixão pela maldade e não dor. És uma Madre Teresa e foges de mochila às costas para salvar, em simultâneo, o presente da Palestina e o passado do Holocausto. Sentimentos assim não fazem feridos nem reféns. Fecha os olhos e atira-te assim como estás agora, de costas e braços bem abertos, o mais vulnerável possível depois da resistência inútil. Fecha os olhos e deixa-te ir. Mesmo que os teus melhores sentimentos te façam ter medo de arder no inferno. Sentimentos assim são de comer à colher como leite creme, têm uma camada estaladiça de açúcar a que chamas de borboletas no estômago — que é uma palavra mais bonita que barriga. Distraída podes ser atropelada por uma bicicleta, perder as chaves de casa, bater com o carro e escrever horas numa ausência súbita e momentânea de autocrítica. Parte dos teus sentimentos não cresceu além dos 16 anos e a outra parte é de uma idade sem fim. Uma coisa é certa, estes teus sentimentos serão a tua descendência no mundo.

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