Uma aventura gráfica aguarelada

The Rivers of Alice é uma proposta com alguns momentos alumiados, um grafismo memorável, e puzzles que maçam após descoberta a sua solução.

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Delirium Studios

As aventuras gráficas têm o dom de transformar os jogadores em falcões, isto é: atentos a todos os pormenores, testando constantemente a concentração enquanto varrem todos os cenários de alto a baixo, da esquerda à direita, uma e outra vez, as necessárias para deslindar o proposto pelos criadores. Ou melhor: as boas aventuras gráficas têm este dom.

É incontornável trazer a lume a LucasArts, tal como é imprescindível mencionar The Secret of Monkey Island, Grim Fandango, Day of the Tentacle, Full Throttle, uma panóplia de títulos adorados aquando dos seus lançamentos originais e agraciados com um novo sopro graças a versões actualizadas e retrabalhadas pela Double Fine. Parece haver público para o que 2015 ofereceu e o que 2016 reserva, incluindo versões remastered dos dois últimos títulos nomeados na frase anterior e, por exemplo, Thimbleweed Park, a nova aventura de Ron Gilbert, considerado um dos pais do género.

The Rivers of Alice – Os Rios de Alice, em português – partilha o cânone, contudo acaba por não se conseguir afirmar como uma oferta sólida. O cerne da narrativa coloca os jogadores a vasculharem mais de dez palcos enquanto Alice dorme, confrontando e lutando contra os seus medos. Desenvolvido pela espanhola Delirium Studios, o seu ponto mais forte é também o primariamente constatado: o estilo gráfico.

Disposto a imitar o aspecto de uma mescla de vários estilos de pintura de onde se destaca a aguarela, logo nos primeiros minutos vemos um campo com ervas que parecem individualmente traçadas com uma caneta preta, uma árvore abana ao vento do outro lado do rio. Sabemos que é o grafismo é igual para todos que começarem a aventura, contudo o sentimento é que estamos a vasculhar o Moleskine de um estudante de belas-artes.

Imediatamente após, a tonalidade adopta o encarnado, somos desafiados a começar a exercer as mecânicas básicas: como foi na Nintendo Wii U (Extended Version) que testei o jogo, é pelo ecrã do GamePad que passarão as interacções com a obra: apanhar e usar objectos, olhar para os vários pontos de interesse, incluindo outras personagens, falar com elas. É tocando com o Stylus no cenário que fazemos a protagonista deslocar-se, sendo que o tocar extremidades faz o jogo passar para o palco seguinte ou anterior, consoante a necessidade exploradora do jogador.

Ainda sem sair das mecânicas principais, é possível consultar os objectos que temos em nosso poder em determinado momento do percurso e, obviamente, usá-los na tentativa de progressão, incluindo o caderno de Alice. Mesmo quando os processos não são intrínsecos, são facilmente assimilados por quem joga. Travamos conhecimento com uma “preguiça” que vai ajudando com dicas visuais mais ou menos úteis – os esboços podem ser consultados no já mencionado caderno. Também pelo cenário vamos encontrando plantas-livro que contêm mensagens crípticas como esta muito perto do final: “Talvez as paredes ladrem... e o tecto comece a correr, dirão que o gigante caiu e uma poça abriu-se aos seus pés” – o jogo está localizado em português.

Nada disto é extraordinário e devia ser o palco onde o crucial dança graciosamente: os puzzles. Contudo, é precisamente aqui que The Rivers of Alice fica aquém. A obra é curta e os enigmas não são muitos, porém é preciso que o jogador se sinta motivado a prosseguir, atiçado pelo despertar do raciocínio e motivado em comprovar que está à altura de desmultiplicar o raciocínio que coadune com a linha de pensamento de quem edificou os puzzles.

Quem começa uma aventura gráfica sabe perfeitamente que o ritmo de jogo não será elevado e sabe também que tem que andar para trás e para a frente nos cenários, ajustando a sua progressão à necessidade de recuar à procura do que o olhar e a lógica não captaram à primeira ou à segunda vez. Todavia, uma boa fatia dos puzzles arrasta-se mesmo depois de descoberto o seu fio de prumo.

Aproximadamente a meio existe um exercício em que temos que acender as luzes de apartamentos em três prédios segundo a lógica das estrelas. É fácil chegar a esta conclusão, mas a resolução prolonga-se demasiado. Tal como um puzzle próximo em que movimentar peças até a imagem ficar alinhada, ou perto do final em que temos que abrir caminho por entre um grupo de pássaros.

Onde The Rivers of Alice consegue piscar o olho aos grandes do género, e evocar algumas memórias de tardes e noites passadas embrenhado em enigmas patrocinados por um Pentium a fazer horas extraordinárias, é quando não complica demasiado sem ser mais fácil por isso: em determinado momento temos que encontrar uma pedra e atirá-la a uma colmeia para atrair a atenção de uma personagem. Simples e eficaz. Ou procurar um copo de água para recolhermos água e regarmos uma planta logo no início do jogo, sublinhando o que foi afirmado no primeiro parágrafo desde os minutos iniciais da aventura.

A produtora de Bilbau consegue alguns rasgos invocatórios do que apaixona os fãs deste género sem precisar de apelar apenas à sua veia nostálgica. É uma infelicidade que a sua obra não seja um pouco mais extensa – precisarão de uma tarde para a terminarem –, pois sente-se ocasionalmente que falta alguma união entre as cenas, ou seja, em certos momentos está perigosamente perto de resvalar para a dessincronização do videojogo como um todo.

As suas falências não são complementadas pelo grafismo, contudo impera salientar como nota de rodapé o que já foi começado na infância do texto: a ocasional desilusão é pintada em tons memoráveis. A praia com a cerca estilizada propositadamente para encantar a retina, lá ao fundo a torre que abre porta para o trecho final, de premeio uma fechadura com símbolos codificados; o desenho das personagens, rostos opacos, um que insiste em trazer-me à memória Yubaba do filme A Viagem de Chihiro, a prazerosa simplicidade de apreciar uma idealização com execução à altura de Ane Pikaza que o som dos Vetusta Morla complementa.

Completar The Rivers of Alice é passar por algumas atribulações e ficar com a sensação que há aqui talento para mais, para um refinar de como explanar um videojogo. O GamePad corresponde quase sempre da melhor forma ao que o jogador pretende e a Wii U não tem quaisquer problemas em exibir na televisão o que já tinha sido contemplado pelos jogadores da versão PC, que agora também podem jogar esta edição mais prolongada.

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