O sabonete da república

Há outros temas importantes, como o novo governo ou o terrorismo na Europa. Mas isso não pode justificar que as eleições presidenciais tenham desaparecido da cobertura televisiva.

Corria o ano de 1997 e o escândalo do momento era o diretor de uma televisão privada — o recentemente desaparecido Emídio Rangel — aparecer num documentário dizendo o seguinte: “Uma estação que tem 50% de share vende tudo, até o Presidente da República! Vende aos bocados: um bocado de Presidente da República para aqui, outro bocado para acolá, vende tudo! Vende sabonetes!”.

Muita gente indignou-se ao imaginar que Emídio Rangel defendia que uma televisão deveria vender presidentes como sabonetes. Curiosamente, o escândalo desaparecia quando a questão se tornava verdadeiramente importante: não saber se a televisão deveria, mas se poderia fazê-lo.

Hoje, é evidente que sim — e está a acontecer à frente dos nossos olhos.

Pode ocorrer por ação, ou por omissão. Há uns meses, antes do Verão, o país preparava-se para as legislativas — e as televisões, nos noticiários e nos comentários, não falavam senão das eleições presidenciais. Agora que as legislativas já passaram e o país se prepara para as presidenciais, não há praticamente cobertura das presidenciais nos canais televisivos. É certo que há outros temas importantes, como o novo governo ou o terrorismo na Europa. Mas isso não pode justificar que as eleições presidenciais tenham desaparecido da cobertura televisiva (com uma exceção; já lá vamos).

Daqui a umas semanas vem o Natal e o Ano Novo e tudo é interrompido. E só depois iremos para a campanha, que será vista como espetáculo, pois há debates e boas audiências. E assim ficarão despachadas as presidenciais, precisamente na altura em que ficou provado que a Presidência da República tem muito mais importância do que muitos pensavam.

Claro que há um candidato beneficiado com este estado de coisas: Marcelo Rebelo de Sousa, que esteve durante quinze anos acampado nas televisões, e cuja estratégia de campanha depende de não ter de esclarecer nada sobre o que fará na presidência.

Para total transparência, relembro que apoio António Sampaio da Nóvoa. Mas, em bom rigor, a questão não se deveria colocar sobre os candidatos. Seremos todos nós os prejudicados se as presidenciais desaparecerem do mapa, com uma desculpa hoje e um pretexto amanhã, e a criação de uma narrativa sobre a ausência de interesse do espectadores, ou a maior importância de uma qualquer controvérsia do momento.

Mais uma vez, Marcelo motiva cobertura por ser uma estrela televisiva de direito próprio. Nos dias em que Marcelo não aparece é como se não existisse mais ninguém, mesmo que os outros candidatos façam declarações e tenham atividades de pré-campanha. O resto das presidenciais é visto, como de costume, pelo prisma da atualidade partidária.

Para isto suceder, Emídio Rangel só falhou numa coisa: nem é preciso um canal com 50% de share, nem uma agenda política própria. Nem sequer é preciso má-fé. Basta a inércia, a força do hábito e “sabedoria convencional”. A partir daí, claro que se pode vender um presidente como quem vende um sabonete. E pode haver quem compre. Em ambos os casos, sem ter consciência disso.

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