Shakespeare em psicanálise coreográfica

A partir do universo shakespeariano, António Cabrita e São Castro construíram uma peça magnética, a confirmá-los enquanto parte de uma promissora nova geração de coreógrafos.

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O insólito peixe vermelho (verdadeiro) que Cabrita segura entre os dentes

Play False é um périplo por diferentes estados de alma. Dito assim, nada pareceria particularizar a peça de António Cabrita (n.1982) e São Castro (n.1976) face à que é matéria base – sensorial, emocional - de quase todo o acto coreográfico. Mas aqui há um poderoso efeito magnético: com um assombroso foco físico e mental os intérpretes constroem 50 minutos encantatórios. O movimento ascensional de um braço que se suspende, um rastejar reptiliano, a explosão de um salto, a queda abrupta provocada por uma contracção do abdómen, uma sucessão nervosa de gestos miudinhos, hesitantes ou impacientes (compor a blusa, ajeitar o cabelo) ou um alegre menear de quadris são acções que ficam a ecoar na fisionomia dos intérpretes, trazendo à tona os subterrâneos de uma busca interior e do que com ela se descobre de verdadeiro e de paradoxal. 

Na sinopse, lia-se, a obra seria uma viagem pela condição humana, os seus limites, o que neles existe de autêntico mas também de falso. Cabrita e Castro partiram do teatro shakespeariano, e da propensão (quase psicanalítica) com que o mais influente dramaturgo do Ocidente mergulha na universalidade do conflito psicológico. A peça decanta, porém, este território referencial (reconhecíveis, a humorística versão dos percalços amorosos de Romeu e Julieta, a disformidade trágica de Ricardo III ou os equívocos de Noite de Reis), e envereda por (muito) virtuosos trechos a solo ou em dueto, onde o abstracto desemboca sempre em micro-narrativas: olhar as próprias mãos, como se fosse surpresa o que elas são capazes; uma dinâmica de braços sugere exaltação ou desistência; um esgar aflito transforma-se num beijo e depois num grito mudo de desespero; troca-se a roupa e invertem-se estereótipos de género…

A identidade temática das sucessivas cenas apoia-se nas direcções da paisagem sonora (a incluir o barroco de J.S.Bach e música electrónica, de Murcof), no cuidado desenho de luz - rasante, oblíquo, frontal ou posterior, ou abrangendo a plateia numa meia-claridade - a definir distintas volumetrias no espaço cénico descarnado, a deixar visível o aparato técnico do palco; e na indumentária versátil, com alusões minimais ao traje barroco, peças usadas por ambos, alternadamente.    

Elos subtis ligam as secções: retomam-se ideias luminotécnicas, padrões expressivos e combinações do vestuário. E há rimas de cor: um breve foco escarlate, a blusa grená de Castro, o insólito peixe vermelho (verdadeiro) que Cabrita segura entre os dentes, no final da peça, voltando-se lentamente para o público de semblante perplexo, o que, por sua vez, tece um fio invisível com a água derramada sobre o palco no início da peça, antes de Castro nela se espojar em movimentos ondulantes de animal aquático.

Lembrando os mais recentes Abstand, Tábua Rasa, e LAUF (no CCB, no próximo fim de semana), a desenvoltura com que Play False transita entre humor leve, ironia e dramaticidade espessa, ancorada na notável empatia criativa e  capacidade de entrega de Cabrita e Castro, faz jus à distinção obtida pela dupla (prémio SPA/ 2015), confirmando-a como parte de uma  interessante e promissora nova geração de intérpretes-coreógrafos portugueses.

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