E a água aqui tão perto

Foto

Quando, em 1979, as ilhas Kiribati se tornaram independentes do Reino Unido, Uriam escreveu o hino nacional do novo país. A ingenuidade da letra de Te Mauri, Te Raoi ao Te Tabomoa (Saúde, Paz e Prosperidade) surpreende. Na Europa desenvolvida e capitalista, não temos ferramentas para assimilar tanta inocência. E por isso usamos a arma dos espertalhões: sorrimos com condescendência. Alguns excertos: “Sejam justos!/ E amem todo o nosso povo!/ Alcançaremos a felicidade/ E a paz do nosso povo/ Quando o nosso coração bater como um só/ Amem-se uns aos outros/ Promovam a paz e a harmonia!” A letra do hino das ilhas Kiribati remata com um “Deus abençoe o nosso Governo e todo o nosso povo!”

Para além de terem um hino com pontos de exclamação a mais, as Kiribati têm identidade: há uma Constituição, um regime democrático presidencialista, um governo, formado pelo Presidente, o vice-presidente e dez ministros, um parlamento (chamado Maneaba Ni Maungatabu), partidos políticos (os quatro principais são o Boutokaan te Koaua, o Maneaban te Mauri, o Maurin Kiribati e o Tabomoa) e um Supremo Tribunal. Todos os dias, as crianças acordam e vão à escola e os jovens podem votar a partir dos 18 anos. As Kiribati são um membro pleno das Nações Unidas desde 1999 e integram três clubes globais: FMI, Banco Mundial e Commonwealth. Têm um território com 800 quilómetros quadrados, o equivalente a Nova Iorque; mas, em vez de dez milhões de habitantes, tem 100 mil, o equivalente à população do Funchal.

As Kiribati até têm, como qualquer outro país, as suas incongruências. Das 33 ilhas, 21 são inabitadas, mas todas têm o seu próprio conselho municipal — mesmo as desertas.

Perante isto, qual seria a probabilidade de Barack Obama, um Presidente que tem poder e não tem tempo, de reunir e até posar para os fotógrafos internacionais ao lado de Anote Tong, o chefe de Estado das Kiribati? Nenhuma. Não fosse o caso de as ilhas serem para os países o que o rinoceronte-negro é para os animais: estão ambos em vias de extinção.

A ONU prevê que as Kiribati desapareçam debaixo de água até ao ano 2100. Faltam 85 anos. Os nossos filhos ainda vão ver isso nos seus tablets — ou em telas flexíveis, veremos. As Kiribati fazem parte de uma sigla pouco conhecida mas falada sempre que há cimeiras do clima, como a desta semana em Paris, a SIDS — Small Island Developing States. Porque o mundo é injusto, ignorando o apelo do hino nacional do arquipélago, são os Estados que menos contribuíram para o aquecimento global e as alterações climáticas os que mais vulneráveis estão aos seus efeitos.

Sugerir correcção
Comentar