Quando a minha rua era uma aldeia

Quintas, burros com babetes, um chafariz para estes beberem água, a Rua de Entrecampos já foi o caminho de saloios e lavadeiras numa Lisboa ainda rural.

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Folheava o livro Photographias de Lisboa 1900, de Marina Tavares Dias, quando parei numa imagem que tinha algo de muito familiar — e, ao mesmo tempo, algo de profundamente distante das minhas memórias. É uma fotografia de um chafariz de pedra, daqueles que existem em várias zonas de Lisboa. Mas havia neste qualquer coisa que eu reconheceria mesmo que apenas o vislumbrasse: olhei para ele todos os dias durante pelo menos 20 anos.

O chafariz da Rua de Entrecampos fica junto à casa onde cresci, encostado à linha do comboio e, hoje, em frente do edifício da EDP que um dia ali despontou, demasiado grande para tudo o que o rodeava. A imagem do livro de Marina Tavares Dias mostra o mesmo chafariz numa data incerta de um passado longínquo.

Na parede de um dos seus “braços” estão cartazes de publicidade antigos — Licor Cointreau, Aguas Fuente Nueva, Odol, o melhor para os dentes. E, à frente, duas carroças com grandes rodas de madeira, puxadas por burros e carregadas até ao limite com trouxas de roupa lavada. Montadas em cima das trouxas, as lavadeiras saloias, de saias compridas e lenços na cabeça, lançam ao fotógrafo um olhar entre a curiosidade e a suspeita.

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Por aqui passava ?a Estrada de Entrecampos, “um caminho ancestral, anterior às Avenidas Novas, com casas ainda ?do século XVIII”. ?O chafariz data de 1851?

Por aqui passava, conta Marina Tavares Dias, a Estrada de Entrecampos, “um caminho ancestral, anterior às Avenidas Novas, com casas ainda do século XVIII”. Parece que era local de grande movimento e animação, percorrido pelas carroças que vinham (e voltavam) da Calçada de Carriche. O chafariz data de 1851. Eu conheci-o nos anos 1970, já sem utilidade. Mas a minha mãe recorda-se dele nos anos 50 do século XX — ou seja, estava a celebrar cem anos de vida.

Foi nessa altura que os meus avós se mudaram do Bairro Alto para a Rua de Entrecampos, zona mais moderna mas com muito menos graça, segundo a minha mãe. Existia ao lado do nosso prédio aquilo a que sempre ouvi chamar “a quinta”. Isto apesar de, pelo menos desde que eu nasci, já não ser uma quinta, mas apenas uma casa senhorial à qual se acedia por um portão, mesmo junto da nossa porta, e um caminho inclinado que a tornava mais misteriosa. Da janela da cozinha via-se o jardim da “quinta”, um pedacinho de uma Lisboa romântica com uma árvore, um banco e uma fonte.

A minha mãe era pequena quando começaram a desmantelar a quinta. Antes disso, garante, havia produção agrícola e animais como se estivéssemos no campo. Tudo foi desaparecendo (pelas contas dela no início dos anos 50) e ficou apenas a casa e o jardim, em frente ao chafariz.

Lisboa era ainda muito rural. No tempo (indefinido) em que as lavadeiras vinham da zona saloia em carroças puxadas por burros e nos anos 50 quando a minha mãe, miúda, ia para a escola perto do Saldanha e atravessava a Defensores de Chaves onde, fiquei agora a saber, passava também por muitos burros. O que mais a divertia era ver os babetes que os animais usavam com os respectivos nomes, que ela se entretinha a ler.

Na Rua de Entrecampos, do outro lado da linha do comboio, havia a taberna (hoje é o bar Entrecopos), provavelmente local de paragem para quem percorria a tal Estrada de Entrecampos e tinha necessidade de beber um copo. Ainda me lembro dessa taberna com a sua latada. Tal como me lembro da mercearia por baixo da minha casa, serradura pelo chão (poupava-se nas lavagens, sobretudo quando por aqui andavam galinhas vivas), grandes bidons com azeitonas, perus pendurados pelas patas na altura do Natal e morangos a manchar de vermelho os sacos de cartão áspero que trazia para casa abraçados contra o peito.

Havia, conta a minha mãe, ao fundo da rua, uma leitaria que recebia o leite dos produtores e onde se ia buscar o que se precisava em leiteiras metálicas e se comprava a manteiga aos pedaços em papel vegetal. Disso já não me lembro. Sou do tempo em que abriu uma moderníssima loja da Ucal. Mas recordo bem a peixeira de canastra à cabeça que vendia peixe em plena Rua de Entrecampos.

Ligo à Mónica Cid para lhe dizer que esta crónica, com ilustração dela, seria inspirada pela foto do tal chafariz, temendo que o tema só interessasse a quem um dia tivesse vivido na Rua de Entrecampos. E ela exclama: “O meu pai viveu em frente a esse chafariz.” “A sério? Na ‘quinta’?” Sim, mas não era bem uma quinta, responde ela. Eu sei, mas para nós, que espreitávamos da janela da cozinha aquele jardim tão bonito, será sempre “a quinta”. Até que já não sobreviva na memória de mais ninguém.     

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