A actualidade de Schmitt

Apesar da ignomínia da sua ligação ao nazismo, Carl Schmitt é um autor fundamental do pensamento político do século XX, e este livro tornou-se um clássico

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Toda a política se inscreve no horizonte da guerra, propõe Carl Schmitt DR

Chegou, finalmente, a tradução portuguesa do livro de Carl Schmitt que há muito se tornou um clássico do pensamento político. Trata-se de uma edição cuidada, enriquecida por notas abundantes e por um estudo introdutório, tudo da responsabilidade do tradutor Alexandre Franco de Sá, que é também um grande conhecedor da obra do controverso jurista alemão, sobre a qual fez uma notável tese de doutoramento (que, na versão publicada em 2009 pelo Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa se chama O Poder pelo Poder). Antes de O Conceito do Político, Alexandre Franco de Sá já tinha traduzido um outro texto menos importante de Schmitt, Terra e Mar: Breve Reflexão sobre a História Universal (Esfera do Caos, 2008).

Carl Schmitt (1888-1985) é um autor de reconhecidíssima actualidade, mas do qual não é possível nenhuma aproximação sem o aviso prévio de que foi um nazi, jurista do Terceiro Reich. Não por acidente ou por deriva temporária, mas do fundo das suas convicções e elaborações teóricas. Sobre esta questão, é da máxima eloquência um texto publicado em 1934, intitulado O Führer protege o Direito, onde ele pretendeu justificar no plano jurídico a eliminação física dos chefes das SA durante a Noite das Facas Longas. O “caso Schmitt” pode ser assim resumido: um dos maiores pensadores do conceito de político, indispensável para percebermos o destino da política e as suas categorias modernas (resultado de uma laicização de antigas categorias teológicas: eis uma das teses de Schmitt mais importantes e de largo espectro), o autor de textos que se contam entre o que no século XX surgiu de mais importante no domínio da teoria jurídica e política, também escreveu textos que são uma abjecção, tal é o seu grau de compromisso com o nazismo (na legislação racial, na política expansionista do Reich, etc.). Foi um compromisso público, objecto de severas críticas logo nos anos 40 do século passado. Mas em 1991 reacendeu-se o “caso Schmitt”, quando foi publicado o seu diário que vai de 1947 a 1951 (contemporâneo, portanto de uma das suas obras maiores, O Nomos da Terra), Glossarium, no qual prosseguiu o mesmo anti-semitismo que acompanhou a sua adesão ao nazismo e a aproximação ao Führer, em 1934. Mas muito teríamos a perder se nos contentássemos com o que Leo Strauss, sarcasticamente, qualificou como reductio ad Hitlerum. Deu-se, aliás, nalguns meios (sobretudo em Itália, a partir dos anos 70 do século passado) um fenómeno interessante: Carl Schmitt foi lido e apropriado pela Esquerda. Mais recentemente, a sua teoria do estado de excepção (bem representativa do decisionismo de Schmitt: “Soberano é o que decide sobre o estado de excepção”) e a sua utilização para um diagnóstico da situação pós-democrática em que já estamos a viver tornaram-se de referência obrigatória.

O Conceito do Político, certamente o texto mais conhecido de Schmitt, deu origem a várias interpretações, às vezes contraditórias. No seu centro, está a tese de que o critério de definição do político é a distinção amigo/inimigo, o que significa que todas as teorias políticas verdadeiras pressupõem o homem mau e toda a política se inscreve no horizonte da guerra. O explícito propósito deste ensaio sobre o conceito do político (não da política, mas do que a torna possível; e sabemos muito bem como esta distinção entre o político e a política foi objecto de um vasto uso, teoricamente muito produtivo) é o de estabelecer uma definição do político que não pressupõe um critério estatal, na medida em que, segundo Schmitt, é hoje impossível definir o político por meio do Estado. Assim sendo, o político não está necessariamente inscrito no horizonte das relações de subordinação. Se pensarmos na contestação do Estado burguês pelo movimento comunista e na crítica do parlamentarismo, percebemos as apropriações de que as teorias de Schmitt foram objecto, pelo lado de um sector da Esquerda, nos anos 70 — e já depois — do século passado. Carl Schmitt coloca assim o político para além do quadro estatal, no qual ele foi inscrito ao longo dos últimos séculos. Esta insistência sobre o combate, a definição “polemológica” do político, é seguramente um ponto que aproxima Schmitt de uma retórica comum aos intelectuais, como Heidegger, que se aproximaram de Hitler. No entanto, Schmitt fornece também uma definição negativa do político, segundo a qual ele não possui uma substância própria, pelo que não pode ser definido pela referência ao Estado, ainda que na época moderna este o tenha progressivamente dominado. Paradoxalmente, a essência do político, segundo Schmitt, consiste em não ter substância, e por conseguinte poder apoderar-se de toda a “substância” e de todo o domínio da prática humana (a economia, a cultura, a arte,a religião, etc.). A essência do político, portanto, diz-nos que tudo pode ser político, trata-se de uma maneira de estabelecer uma relação com as coisas: o político não tem um conteúdo particular, toda a prática, todo o pensamento e todo o domínio da acção são susceptíveis de se tornarem políticos, e tornam-se de facto a partir do momento em que a intensidade das relações entre os humanos ultrapassa um certo limiar cuja marca é a distinção amigo/inimigo. Neste sentido, deve-se renunciar a dizer “o político é...” para se dizer  antes “há o político” (veja-se, por exemplo, como Jacques Rancière segue uma lógica semelhante), a partir do momento em que se dá o encontro entre amigo e inimigo. Schmitt colocou assim no centro do seu pensamento político a questão da hostilidade, das suas modalizações religiosas e políticas, desde a guerra civil de cariz religioso, até à ideia de “guerra justa” humanitária.

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