"Paris na~o e´ mais um sonho"

A portuguesa Rebeca e o namorado Vicente estavam a assistir à Marcha Mundial pelo Clima, em Paris, e acabaram por ser presos juntamente com "mais 300" pessoas. Falam de uma detenção ilegítima, de violência e de condições desumanas nas celas. Este é o testemunho enviado ao P3

Rebeca Amorim Csalog
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No domingo passado, dia 29 de novembro, eu e o meu namorado, Vicente, decidimos passar pela Place de la Republique, em Paris, para ver como estavam as coisas relativamente à Marcha Mundial pelo Clima. Eu sou estudante Erasmus em Antropologia e Filosofia e estou a viver cá desde setembro, e o Vicente tinha vindo este fim-de-semana visitar-me. Já há um mês que via cartazes sobre a marcha no metro e na rua, e ia seguindo as páginas no Facebook sobre os eventos que se iam organizar. Na minha faculdade (Paris Diderot 7) houve debates, filmes e refeições vegan colectivas e gratuitas organizadas pelos alunos nas semanas antes da Cop 21. Pareceu-me excelente estar pela primeira vez numa cidade que se mexe para fazer coisas, que debate e se organiza em torno de questões tão importantes como o ambiente, o clima e a natureza.

Por isso, quando depois dos ataques de 13 de novembro a marcha foi anulada, fiquei triste. Mas os debates continuaram, e surgiram logo outras iniciativas para não se deixar de fazer algo nesse dia – como por exemplo deixar milhares de pares de sapatos espalhados pela Place de la Republique. 

Quando acordámos nesse domingo, para aí ao meio dia, e vimos no facebook as imagens da praça cheia de sapatos, decidimos passar por lá para ver. Era o último dia do Vicente em Paris comigo, tinha um voo na manhã seguinte, e queríamos dar uma volta pela zona, ver como estava a Place de la Republique e depois ir até Belleville e passear um bocado.

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Chegámos pelas 14h, a praça estava cheia de gente e as ruas principais pareciam estar todas bloqueadas pela polícia (gendarmerie), com imensas carrinhas atrás. Percebemos que estava difícil sair e entrar na praça. No centro da praça havia duas carrinhas a distribuir refeições vegetarianas a toda a gente. Encontrámos lá uma amiga minha italiana, também em Erasmus, e os seus amigos. Ao lado havia um grupo sentado no chão a ouvir algumas pessoas a discursar com microfones, sobre o clima, a cop 21, a natureza, novas medidas ecológicas, etc. Ouvimos coisas interessantes, toda a gente aplaudia. Não havia na verdade nenhuma manifestação, mas vários grupos de pessoas a fazer coisas diferentes, com música, dança, debates, comida, e até um grupo de palhaços que estavam a fazer animações. 

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Fomos ver a instalação com os sapatos num dos cantos da praça, e foi quando estávamos lá que ouvimos os primeiros petardos e vimos o fumo das bombas de gás lacrimogéneo a vir do outro da praça. Os grupos que estavam no centro da praça começaram a dispersar, as carrinhas da comida foram embora. A maior parte das pessoas juntou-se no centro para ver o que se passava, e tapar os olhos e o nariz por causa do gás. Nós fomos também para mais perto, para ver o que se passava – eu queria tirar fotografias.

Começámos a ver pessoas a atirar garrafas e lixo para os cordões da polícia, alguns agarravam em velas que estavam no memorial para as vítimas do atentado, no centro da praça, e atiravam, espalhando vidros por todo o lado. A maior parte deles estava vestido de preto e com máscaras. A polícia começou a responder de forma mais agressiva, a atirar petardos para os pés das pessoas e gás para os olhos. Ficámos todos a chorar, com os olhos a arder e com dificuldade em respirar. Mesmo assim aproximámo-nos, estávamos ao mesmo tempo com medo mas curiosos, e vimos a violência a escalar cada vez mais entre a polícia e os manifestantes, com por um lado os manifestantes pacíficos que se sentavam de mãos dadas e com flores à frente da polícia a dizer frases como “sans haine, sans armes, sans violence” (sem raiva, sem armas, sem violência), e por outro lado o grupo que continuava a atirar coisas e a provocar os polícias, ignorando os apelos de toda a gente para parar com a violência.

Percebemos que a polícia estava a começar a cercar a praça devagarinho e a empurrar-nos para o centro. Ainda lá estavam grupos com música, a dançar, a fazer capoeira e acrobacias de forma pacífica, muitos estavam sentados no chão a ver. Ficámos por lá a observar, curiosos. A polícia ficou bastante tempo parada a olhar para nós, sem fazer nada, até que começaram a apertar cada vez mais o círculo sem nos dar a hipótese de nos irmos embora. Quando nos apercebemos de que estávamos completamente cercados num canto da praça (encostados a uma esquina de um edifício), já era tarde demais, e não nos deixaram sair. Estivemos algumas horas (mais ou menos entre as 15h e as 17h) só à espera para ver o que ia acontecer. Queríamos ir embora, estávamos a apanhar uma seca, mas ninguém podia sair, inclusive jornalistas e pessoas idosas, algumas que aparentemente estavam lá só por acaso. Éramos à volta de 500 pessoas cercadas, estava frio e não dava sequer para irmos à casa de banho ou beber água.

Começámos a ver que a polícia fazia algumas investidas para agarrar em pessoas e levá-las para as carrinhas (que eram imensas, dezenas), e demos todos os braços com força num enorme cordão humano, enquanto os polícias nos atiravam spray pimenta para os olhos. Depois as coisas acalmaram um bocado outra vez, e soltámo-nos aos poucos. Alguém pôs música e começámos outra vez a dançar, a tentar aquecer - estávamos todos gelados, com a cara e os olhos a arder e completamente fartos de ali estar. Continuava a haver algumas investidas, mas eu e o Vicente achámos que seria melhor ir para o fim do cordão, perto da barreira dos polícias, na esperança de conseguirmos sair, e para não nos misturarmos com pessoas que estivessem ainda a manifestar-se ou a reagir de forma violenta. Ficámos lá a conversar e jogar jogos para passar o tempo, e do nada sentimos três polícias a agarrar-nos e a levar-nos dali para fora. Não os vimos chegar, estávamos completamente distraídos a rir e a conversar. Num primeiro momento entrámos em pânico, pensámos que nos iam separar, gritámos e resistimos, o Vicente não me queria largar, mas depois um dos polícias assegurou-nos que íamos ficar juntos e parámos de resistir. Revistaram-nos, tiraram-nos as nossas malas e fizeram-nos entrar numa carrinha já com 11 pessoas. Perguntaram-nos a nossa nacionalidade, e quando dissemos que éramos portugueses, um dos polícias disse com muito orgulho: “bacalhau”. Eu estava ainda a chorar de pânico…

Os outros miúdos dentro da carrinha disseram-nos que iam prender toda a gente que estava dentro do cerco, que era só uma questão de tempo, por isso conformámo-nos e até rimos da situação (completamente surreal), e ficámos com a estúpida esperança de que daí a umas horas íamos estar em casa.

Fomos então levamos para o Comissariat de Bobigny, onde fomos novamente revistados e alvos de troça por toda a equipa de polícias que nos esperava à entrada. Tivemos que implorar para nos deixarem ir à casa de banho, sempre a ser alvos de gozo. Enquanto isso um dos polícias disse-nos que iam só identificar-nos e ouvir os nossos depoimentos e ligámos às nossas mães, ainda a rir-nos da situação, a dizer que estava tudo bem e que não duraria muito tempo, e que não se deviam preocupar.

De seguida levaram-nos um a um para dentro. Perguntei se podia ir com o Vicente, porque ele não fala francês, e eles disseram que não, mas que já nos íamos encontrar todos lá dentro. Eu fui primeiro. Entrámos cada um em uma sala e fomos informados das nossas acusações (“manifestar ilegalmente e não cumprir as ordens de evacuação da polícia” – quais ordens???) e dos nosso direitos, se bem que mesmo tendo dito que queria um advogado e tendo dado um nome, disseram-me que não iam procurar o número por mim e que tinha que assinar que não queria um advogado. O Vicente perguntou qual era a solução mais rápida ao que eles responderam imediatamente que seria sem um advogado, e ele aceitou, sem saber bem o que fazer, e completamente perdido – ninguém na esquadra falava um mínimo de inglês e não se esforçaram para o ajudar a compreender o que se passava. Tanto eu como ele não nos preocupámos muito com a questão do advogado, porque ainda não sabíamos o que nos esperava, e pensávamos que seriam só umas horas. Só depois de assinarmos tudo é que fomos informados de que íamos passar a noite inteira lá, em “garde-à-vue” e que só íamos sair na manhã seguinte cedo. Falámos do voo que o Vicente devia apanhar para lisboa, às 10h da manhã de segunda-feira, e eles responderam que em princípio ainda seria possível apanhá-lo porque íamos ser ouvidos cedo, e talvez saíssemos à noite ou de madrugada.

Depois disso tiraram-nos todas as nossas coisas: pulseiras, brincos, cordões dos sapatos, soutien, elásticos do cabelo, óculos; e fomos revistados de cima a baixo, das meias às cuecas - literalmente. Aí apercebi-me de que íamos passar a noite separados, porque as celas não eram mistas e comecei a chorar em pânico. Não me deixaram sequer falar com o Vicente e explicar-lhe o que se ia passar. O ambiente era horrível, sentimo-nos miseráveis. 

Fomos cada um para a sua cela. O Vicente ficou com numa com um rapaz que tinha vindo connosco na carrinha e um homem que era acusado de tentativa de assassínio, ao que depois se juntaram outros três que tinham vindo também da manifestação. Eu fiquei com mais duas raparigas que tinham vindo connosco. As celas estavam imundas, cheiravam horrivelmente mal, havia mijo no chão todo e as paredes tinham coisas escritas com merda, e só havia um banco de pedra para nos sentarmos. A cela das raparigas tinha particularmente muito mijo no chão, tinha uma poça enorme. Deixaram-nos lá um bom tempo a chorar e a gritar para nos porem noutro sítio, ao que um dos polícias que passou respondeu “pour les femmes c’est tout ce qu’il y a“ (para as mulheres é só isso que há). Os comentários racistas e machistas não ficaram por aí. Ao Vicente e aos outros rapazes disseram nunca tinham visto tantos brancos na esquadra de Bobigny, por exemplo.

Finalmente trocaram-nos de cela, que ao menos não tinha o chão inundado com mijo. Mesmo assim o cheiro continuava a ser insuportável, e as condições lastimáveis. Entretanto passaram algumas horas, muita gente gritava a exigir o direito a um advogado ou a um médico, a pedir para ir à casa de banho ou para beber água. Fomos um a um fazer as fotografias e tirar as impressões digitais (só a alguns é que exigiram o ADN). E passaram-se horas em desconforto e frio. Às raparigas deram jantar, mas à cela do Vicente e dos outros rapazes não deram comida até às 9h da manhã seguinte (só duas bolachas e um sumo). Não havia cobertores para todos, nós (as raparigas) conseguimos um por sorte, que partilhámos as três; e mesmo tendo estado todos a noite inteira a implorar por cobertores, ninguém quis saber – disseram-nos que as celas estavam sobrelotadas O homem que era acusado de tentativa de assassínio foi depois transferido para a cela que estava cheia de mijo e esteve a berrar e a dar pontapés na porta a noite toda.

De manhã começámos a perceber que se calhar não íamos sair cedo, como nos tinham prometido, e eu comecei a exigir falar com um advogado e com o consulado português, ao que eles disseram que não podiam fazer nada, que isso não era com eles. Uma das raparigas que estava comigo (de 37 anos) sofria de reumatismo e a artrose e tinha pedido direito a um médico, que não veio apesar das queixas que fez a noite toda enquanto sofria de dores.

Por volta do 11h, fomos cada um falar com um detective para fazer o nosso depoimento. O Vicente encontrou um que falava português, o que facilitou as coisas. No geral foram todos simpáticos (os primeiros depois de horas), e disseram-nos que íamos sair no início da tarde. Voltámos para as celas, deram-nos um almoço às 15h e só às 17h30 é que, um a um, nos foram deixando sair. Deram-nos as nossas coisas e disseram adeus. Eu pedi um papel para justificar as minhas faltas mas pelos vistos não é permitido, é como se nunca tivéssemos estado ali e não o podemos provar a ninguém. Tão pouco se importaram com o vôo que o Vicente perdeu por razão nenhuma – todos eles nos disseram desde o início que sabiam perfeitamente que éramos inocentes mas que tínhamos de estar ali à mesma, e não se preocuparam minimamente connosco.

Ninguém conseguiu dormir, a comida era intragável, tínhamos que implorar para ir à casa de banho e para beber água, e ficámos horas sem saber o que se passava porque ninguém era capaz de nos dar informações. Para além do mais negaram-nos o direito a um médico e a um advogado.

Depois de chegarmos a casa, de comer, tomar um banho, e recuperar do choque, procurámos por notícias sobre o que se tinha passado – não encontrámos nada. Soube entretanto que fomos mais de 300 miúdos pacifistas e ser presos na Place de la Republique, que foram distribuídos por todas as esquadras de Paris e île de France. No final só 9 é que foram presos – provavelmente alguns dos que atiraram coisas à polícia (pelo menos assim o espero).

O que se passou é muito grave. Foram várias as violações dos direitos humanos nessas 24 horas. O Estado de emergência em Paris por causa dos atentados não pode ser uma desculpa para fazer atrocidades com legitimidade – não pode ser uma ditadura, e é a isso que se começa a assemelhar. O mais irónico é que a interdição de fazer manifestações que existe desde os atentados de 13 de Novembro é, supostamente, para nossa segurança. Fomos presos, então, para nossa segurança... E os mercados de natal, maratonas, centros comerciais, com milhares de pessoas também, não são interditos. Há muitas coisas a denunciar: a violência dos polícias, as detenções ilegítimas, as condições desumanas, a negação dos nossos direitos. Por isso não nos vamos calar enquanto toda a gente não souber o que se passou nesta Marcha Mundial pelo Clima. 

Viva a França, o país dos direitos do Homem?... Não podemos ignorar. Não podemos ficar calados. Paris não é mais um sonho.

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