Um menu de degustação com travo tuaregue

Ariel Pink, Nicolas Godin e Patrick Watson eram os grandes nomes da última noite do Mexefest. Mas foi Bombino quem deixou melhor sabor na boca.

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Ariel Pink Miguel Manso
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Patrick Watson Miguel Manso
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Glockenwise Miguel Manso
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Selma Uamusse Miguel Manso

Não é incomum que um menu de degustação tenha dezena e meia de pratos: prova-se um pouco de tudo, mas come-se cada item em quantidade menor do que numa refeição convencional. A vantagem é que se aprecia uma larga paleta de sabores de uma vez e não é raro ter-se surpresas agradáveis; a desvantagem é a variedade confundir o palato. Esta rebuscada metáfora serve para dizer que haverá sentenças em barda para a noite de encerramento do Mexefest, no sábado, mas, se alguém nos perguntasse, Bombino soube melhor.

O primeiro grande nome era Ariel Pink, que se muniu de três teclistas para enfrentar meio Coliseu com uma pop ora atmosférica, ora exótica (em que as notas se assemelhavam a bolas de sabão coloridas, que lançavam faíscas coloridas quando explodiam no ar), ora experimental, ora psicadélica. Pink é uma enciclopédia musical, pelo que o concerto oscilou entre temas que poderiam pertencer à banda sonora de Fame e temas que ecoam Bowie na fase Ziggy Stardust. Culminando o paradoxo, o melhor tema foi Baby, uma versão da década de 1960.

Nestas rotas das tapas não é incomum querer-se um prato e sair outro (o que não é obrigatoriamente mau). Perguntamos: “Esta é a porta para o concerto dos Glockenwise?” Dizem-nos que sim e deparamo-nos com Da Chic. O evento decorreu numa piscina apelidada de Tanque, o que facilita a analogia: há um leve travo a pastiche (um pouco de Prince aqui, o baixo de Another one bites the dust, dos Queen, acolá), mas não se pode dizer que a portuguesa tenha metido água. Artilhada com uma secção de metais bem afinada, Da Chic apoiou-se em linhas de baixo saltitonas e conduziu à dança.

Nesta altura já tínhamos perdido os concertos de Holy Nothing e de Selma Uamusse. De modo que entrámos na porta ao lado – a certa –, a tempo de apanhar uma mão-cheia de canções dos Glockenwise, marcadas por uma muralha de guitarras em jeito de rebarbadeira. Se o corpo do ouvinte leva tautau de tanta electricidade, a pele é suavizada pelo creme das melodias. São miúdos, ainda há, como se diz no mundo do futebol, “espaço para crescer”, mas tivessem nascido na década 1970 e estariam a abrir para os The Jam.

A cada concerto que passava tornavam-se notórias as longas filas de espera à entrada de cada concerto, visto que, compreensivelmente, a organização, estando um concerto lotado, só permitia entradas mediante saídas. Quando alguém tem o prato filipino na mão, os outros têm de se contentar com sushi.

Ou, no caso, petisco tuaregue: Bombino, na Estação Ferroviária do Rossio. Secundado por uma banda composta por bateria, baixo e guitarra extra, o músico semi-improvisou o melhor concerto da noite. Semi-improvisou, porque estas canções, uma mistura de rock psicadélico com melodias tuaregues, libertam-se das amarras de pontes e refrões, entregando-se a longos instrumentais de destino imprevisível. A secção rítmica providencia um gingar que nunca provoca enjoo, mas também não convida ao sono, enquanto as duas guitarras desenham rendilhados por cima. Renda a boiar em água não parece (teoricamente) grande ideia, mas ninguém arredou pé.

Quando o objectivo é provar música, decisões têm de ser tomadas. Apanha-se o fim de Nicolas Godin? O início de Cachupa Psicadélica? E aqui convém dizer que se antigamente as pessoas começavam a praticar desporto em Maio, para terem um corpo bonito no Verão, agora têm também de ter em conta Outubro, para aguentarem as caminhadas do Mexefest. De modo que a opção foi a Cachupa Psicadélica servida no Palácio Foz, porque ficava mais perto. Há algo de morno nestas protomornas que enxertam século XXI na tradição cabo-verdiana – em compensação pode admirar-se o palácio, que é belíssimo.

Antes de Patrick Watson no Coliseu, improvisámos nova passagem pelo Tanque, para aferir da temperatura. Está quente ali, por via do one woman show de Peaches, que exibia: maquilhagem vermelha, extensões loiras no cabelo, maillot em que estava estampada uma cara de homem zangado e os seus dotes no auto-djing, actividade que implica pôr o CD a tocar e cantar por cima. Acaba com Fuck the pain away, enquanto bebe champanhe e atira toalhas que acabou de esfregar nas suas partes baixas, deixando o público a cantar o refrão em uníssono, num êxtase cor da maquilhagem de Peaches.

Não são só as pessoas que se movem no Mexefest, a informação também e, quando entramos no Coliseu para assistir ao desempenho de Patrick Watson, já sabemos que houve concertos acima da média que perdemos por sobreposição de horários (The Parrots foi bom, Castello Branco idem, etc.). Um concerto de Watson é uma lição de geografia: isto é uma planície, isto é uma montanha. Quando a força de um tema está concentrada no piano, o Coliseu torna-se demasiado grande para tanta intimidade e vai de planície. Mas em se lhe dando para requisitar participação activa de todos os músicos, Watson inventa montanhas na forma de refrões épicos que servem muito bem a sua pop clássica.

Não foi perfeito, pareceu longo, o que pode dever-se ao cansaço que se vai infiltrando no corpo e ao excesso de sabores que o cérebro tem de processar numa só noite, mas os fãs não ficaram desiludidos.

Do menu destacam-se as rendas de Bombino, as farpas eléctricas dos Glockenwise e 50% dos temas de Ariel Pink. O que não é nada mau, numa só refeição.

 

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