O capricho da diva

Prima Donna falha como concerto visual sinfónico e fica-se por um kitsch anestesiado. Mas quando Rufus canta dramas do quotidiano em canções pop, os fãs suspiram.

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Prima Donna, de Rufus Wainright Márcia Lessa/FCG
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Um quadro projectado representando uma mulher com um luxuoso vestido branco dá o mote kitsch ao "concerto visual sinfónico" feito a partir da ópera Prima Donna de Rufus Wainwright, cantor pop e compositor que afirma ser "fanático" da ópera desde os seus treze anos. Na verdade, quem está representada lá atrás (na pintura projectada) é a actriz Cindy Sherman como uma prima donna imaginária. Mas já lá vamos.

Antes da música começar, surpreende o próprio Rufus Wainwright: "Hello!" E apresenta o espectáculo e os cantores. Wainwright adverte os espectadores que o que se seguirá são "os dois lados da [minha] natureza complicada". É o lado pop e o lado clássico, mas é também a afirmação da sua homossexualidade que está em causa. Num tom brincalhão, explica porque vai diz em português "obrigada", mesmo sendo um homem. De certa forma, a diva é ele próprio, o autor com identidade "complicada" e a star: "Não saiam da sala na primeira parte, que na segunda venho eu". E assim foi.

A primeira desilusão começa com o vídeo que a pintura projectada anuncia. Fotos emolduradas de Maria Callas constroem uma referência previsível e de uma constrangedora falta de imaginação. Em todo o vídeo, o "piroso" fica preso à constante câmara lenta. O único momento forte do filme é quando vemos Cindy Sherman a desmaquilhar-se, já perto do fim. Mas até aí a cena é desastradamente filmada, coisa estranha para um tão conceituado realizador de vanguarda, Francesco Vezzoli.

A segunda desilusão é a música. Prima Donna começa a bom ritmo e parece podia ser uma reflexão musical sobre a ópera, mas fica-se à superfície, nostalgicamente embalado por imagens pastosas. Não é bem a ópera que está em causa, aliás, mas "a diva" como figura mítica – uma imagem sem história. Está lá também o excessivo da ópera, a exaltação sentimental, o travestimento. Mas o mais importante são as imagens e os mitos da prima donna: o abandono dos palcos, o regresso da diva, a fusão com o "grande papel" da sua carreira, o fim da carreira, o último autógrafo. Numa cena, a Diva Regina (a excelente soprano Sarah Fox) faz vocalizos para provar a si mesma que é capaz de cantar como dantes. Mas nem os clichés parecem servir como material criativo. O resto é pastiche e referência reconhecível da ópera neo-romântica, em francês. O problema é que aqui o kitsch nunca vai mais longe, como se vendesse à moda o seu manifesto nostálgico contra o esquecimento. O kitsch poderia tirar as coisas do seu lugar, sobrepondo elementos que não colam, desafiando o clássico, o arrumadinho e o straight (como faz, por exemplo, Werner Schroeter no seu cinema, em que a diva da ópera também é uma figura central). Mas aqui tudo fica afinal arrumadinho e sem a mínima força provocatória.

A contradição musical é também resultado desta atitude complacente com os seus materiais. Rufus Wainwright procura aceder directamente às emoções como um neo-romântico inspirado e intuitivo, ao mesmo tempo que se debruça sobre a ópera num gesto que exige distância. Ficamos a meio, num pastoso consenso. O falhanço visual do espectáculo é acompanhado por um fracasso musical. Modernização conservadora? Actualização conformista?

Incapaz de reflectir sobre a figura da diva, o espectáculo fica-se pelo capricho. Wainright tem jeito para se rodear de nomes (neste caso Vezzoli, Sherman, Joana Carneiro e um conjunto de muito bons cantores), e mostrou na segunda parte, com as suas canções, saber conquistar o público com a sua simpatia e sentido de humor, criando uma imagem de autenticidade descontraída (o oposto da tensa artificialidade da ópera, não é?). E, na verdade, as canções da segunda parte, acompanhadas com profissionalismo pela Orquestra Gulbenkian e a maestrina Joana Carneiro, são uma espécie de continuação de Prima Donna.

Com a sua voz de timbre tenso e as suas melodias cheias de retardos, Rufus aspira, afinal, a ser o inspirado romântico que compõe árias de ópera para os tempos de hoje, cantando o banal como drama: o amor entre gomas, telemóveis e leite com chocolate. O gesto pop podia até ser interessante e as canções foram competentemente executadas (fica sempre aquela no ouvido). Mas qual drama? "So let it all go by, looking at the sky" – não há drama nenhum. O que interessa é ser star, porque é divertido. No fim, aplausos entusiásticos de pé. Uma diva precisa de fãs. 

 

Pedro Boléo

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