No Sud Expresso para Paris

O jornalista Carlos Cipriano vai à cimeira do clima no emblemático Sud Expresso. E pelo caminho conta-nos esta viagem Lisboa-Paris.

 

26.11.2015

17h

Train To Paris é uma iniciativa da UIC (União Internacional dos Caminhos-de-Ferro) que leva à Cimeira do Clima comitivas internacionais de vários países no meio de transporte ambientalmente mais sustentável – o comboio. De Portugal e de Espanha, do centro da Europa e até da Rússia, da China e da Mongólia, dezenas de delegados à cimeira viajam sobre carris para chamar a atenção do público e dos decisores mundiais para a importância do modo ferroviário.

Desde Lisboa a Paris a viagem demora 24 horas no velho Sud Expresso, o comboio inaugurado em 1888 por Georges Nagelmackers. O comboio por onde viajou a elite portuguesa dos finais do séc. XIX, que transportava livros e ideias liberais, frequentado por refugiados e espiões durante a II Guerra Mundial, e meio de transporte de milhares de emigrantes portugueses para França na segunda metade do séc. XX.

O PÚBLICO viaja a bordo deste emblemático comboio. Destino: Paris.

 

 

26.11.2015

21h27

A partida

No comboio de Lisboa para Paris a locomotiva é alemã e as carruagens são espanholas. Sinais dos tempos. Portugal já quase não tem indústria ferroviária e a CP, para assegurar o centenário Sud Expresso que todos os dias liga Lisboa à fronteira francesa de Hendaya, teve de alugar material circulante à sua congénere espanhola Renfe.

São 21 horas e 27 minutos em Santa Apolónia quando a locomotiva 5600, de marca Siemens, solta um prolongado apito e o Sud Expresso arranca para mais uma viagem até aos Pirenéus. A viagem de hoje não é de rotina, como se nota pelo grupo de notáveis que acabaram de ser fotografados junto à composição e que deram ao cais de Santa Apolónia um cheirinho a cosmopolitismo, como nos velhos tempos em que neste comboio viajavam aristocratas e burgueses, intelectuais, diplomatas e espiões.

Hoje acaba de embarcar a delegação portuguesa que vai participar em Paris num evento organizado pela UIC (União Internacional dos Caminhos de Ferro) no âmbito da Cimeira do Clima. O presidente da CP, Manuel Queiró, viajará até Paris, mas o seu homólogo da Infraestruturas de Portugal, António Ramalho, sairá em Coimbra. Mas para Paris prosseguem viagem representantes da Agência Portuguesa do Ambiente, da Quercus, da Liga para a Protecção da Natureza e da Universidade de Coimbra. E também dois deputados da nação: Ricardo Bexiga, do PS, e Manuel Frexes, do PSD.

Juntem-se ainda representantes da Plataforma Ferroviária Portuguesa, um grupo de empresas que pretendem constituir-se como um cluster ligado ao caminho-de-ferro. Empresários e técnicos da Thales, Mota Engil, Evoleo e Nomadtech também vão a bordo.

Para transportar tão ilustre comitiva o comboio foi reforçado. Em vez de 16 carruagens, hoje leva 21. Mas há que explicar que algures a meio da noite, em Medina del Campo, a composição será partida ao meio e um ramo seguirá para Madrid enquanto o outro vai para a fronteira francesa. Desde há três anos que a CP juntou o Sud Expresso e o Lusitânia Expresso num comboio único: as duas composições vão acopladas no percurso português e em parte do percurso espanhol, separando-se depois cada uma para o seu destino.

Meia hora depois da partida há um Porto de Honra na carruagem-restaurante. Mais uma excepção na viagem de hoje, porque há dois anos foi-lhe retirado o serviço de restaurante, ficando apenas uma carruagem-bar onde se come ao balcão. O Sud sobrevive, mas tem cada vez menos glamour.

Manuel Queiró e António Ramalho dão as boas vindas e referem o contributo que os transportes podem dar para um desenvolvimento mais sustentável. É que hoje, no mundo, os transportes representam 40% das emissões de CO2 e dependem ainda em 95% do consumo de combustíveis fósseis. Há, pois, muito para fazer neste sector.

E a propósito disto, quanto se poupa em emissões de CO2 ao viajar-se neste Train to Paris face à alternativa rodoviária? Não há dados para a viagem toda, mas entre Lisboa e Vilar Formoso cada passageiro que viaja de comboio é responsável pela emissão de 7,71 kg de dióxido de carbono. Se fosse de automóvel emitiria 58,33 kg. Medidos em euros, os custos ambientais desta viagem de comboio até Vilar Formoso estimam-se em 9,52 euros, enquanto de carro são 30,93 euros.

 

 

27.11.2015

1h40

Beira Alta

Um comboio nocturno com carruagens, camas e restaurante é um pouco como um navio de cruzeiro. Está-se isolado, envolto num universo próprio, desligado do mundo que se vislumbra através da janela. Neste caso, em plena Beira Alta, quase nada se vislumbra — apenas umas luzes fugazes de algum apeadeiro interrompem de vez em quando a escuridão.

O Sud Expresso circula agora num traçado sinuoso. Adivinham-se fragas de granito, aterros, trincheiras, curvas apertadas, alguns túneis de vez em quando.

Cá dentro, porém, o ambiente é animado, como animada vai a tertúlia entre ferroviários, políticos e ambientalistas. Há unanimidade em quase tudo — o comboio é o modo de transporte mais económico e mais amigo do ambiente, mas em Portugal desinvestiu-se demasiado no caminho-de-ferro e agora é difícil recuperar a sua quota de mercado, tanto nos passageiros como nas mercadorias.

Há duras horas atrás, o Sud, que até então circulava num suave deslizar pela linha do Norte, desata de repente aos solavancos, num trepidar incomodativo que não passou despercebido aos passageiros. Circulava-se então entre Alfarelos e Coimbra, num troço da linha do Norte que ainda não foi modernizado (a modernização da linha começou em 1998 e ainda não foi concluída).

Boa altura para perguntar a António Ramalho, presidente da Infraestruturas de Portugal, sobre quando será modernizado este e outros troços da linha do Norte. Mas o gestor chuta para canto. Diz que está tudo no site da empresa que dirige. Não se compromete com datas.

E quanto à electrificação da rede ferroviária? No debate, os técnicos também estavam de acordo — os comboios eléctricos só consomem 8 kw por hora, o equivalente a um litro de gasóleo. E podem levar centenas e milhares de pessoas. Para quando a electrificação das linhas onde ainda se movem comboios a diesel?

Mas também aqui António Ramalho não se quis comprometer. “Está tudo escrito no PETI”, o Plano Estratégico de Transportes e Infra-estruturas, responde. De resto, reconhece o seguinte: o governo mudou e agora todos estes investimentos poderão ser questionados pelo novo poder político.

Meia-noite e 20 minutos. O Sud Expresso está a parar em Santa Comba Dão. Lá fora há um movimento inusitado: dezenas de militares de GNR correm ao longo do comboio. É a terceira operação policial num espaço de três dias aos comboios internacionais. Os cerca de 30 operacionais impressionam pelo número, pelo equipamento e porque trazem também cães que em breve farejam pessoas, malas e compartimentos.

“Pedimos que mostrem os vossos documentos e que coloquem as vossas malas no chão”, avisa um jovem oficial ao entrar em cada carruagem. Depois segue-se o controlo. Mas quem observa de perto estes operacionais repara que, apesar do seu marcial, estes homens são, afinal, educados e, por vezes até, afáveis. Dizem “por favor” e até desejam boa viagem.

O controlo efectua-se entre Santa Comba e Celorico da Beira. No final, não houve detenções nem contratempos. E até sobra algum tempo para estacionar e conviver na carruagem-bar (ao lado da carruagem-restaurante).

Ouve-se cantar os parabéns. O responsável da empresa de restauração a bordo (Newrest) faz hoje anos e os empregados trazem-lhe um bolo. Com GNR, cães, políticos, jornalistas, passageiros e tripulação à mistura, o ambiente frenético desta carruagem tem o seu quê de surrealista.

É 1h40. Estação da Guarda.

 

 

27.11.2015

2h50

Vilar Formoso

Cimeira ibérica da Figueira da Foz em Novembro de 2003. Durão Barroso e José María Aznar apresentam, sorridentes, um maravilhoso plano para a construção de cinco linhas de TGV, duas das quais ligariam Portugal a Espanha. Pelo meio, há um convénio assinado entre os dois países: os espanhóis comprometem-se a electrificar a linha de Salamanca até Vilar Formoso para dar continuidade à nossa linha da Beira Alta. Uma pretensão portuguesa há muito desejada visto que, pela sua parte, Portugal tinha levado já a electrificação do seu caminho-de-ferro até à fronteira.

Novembro de 2015. O Sud Expresso está parado na estação de Vilar Formoso. A locomotiva eléctrica que o rebocou desde Santa Apolónia é desengatada e manobra para uma via de resguardo. Agora aproxima-se uma pesada e barulhenta locomotiva diesel espanhola. Muito devagar, encosta ao Sud e um funcionário da Refer (agora chamada Infraestruturas de Portugal) enfia-se entre os tampões de choque do monstro de aço e atrela-o à composição.

Doze anos depois, nuestros hermanos, não cumpriram o prometido e continuam a manter uma espécie de “barreira aduaneira técnica” entre Espanha e Portugal. Em Vilar Formoso todos os comboios de passageiros e de mercadorias têm de mudar de tracção.

O “Train to Paris” é agora um comboio diesel, muito menos amigo do ambiente do que na viagem até à fronteira. A locomotiva gasta 100 litros aos cem.

É uma mulher que vai aos comandos. Ana Belém é de Salamanca e conduz comboios de longo curso para Vilar Formoso, Madrid e Irun. São 3h40 da manhã e esta é a segunda viagem que faz esta noite. Entrou de serviço à meia-noite em Salamanca e trouxe para Vilar Formoso o Sud e o Lusitânia em sentido contrário. Agora regressa a casa, onde deixará o comboio entregue a outro colega que o levará até Medina del Campo. Nesta estação haverá nova troca de locomotiva e o Sud volta a ser outra vez amigo do ambiente.

De momento Ana Belém segue atenta à linha férrea que desliza à sua frente. A paisagem, com muitas rectas, é monótona. Felizmente há luar. Avista-se bem a paisagem rural de Castela. Passamos por Ciudad Rodrigo. Circula-se a 140 km/hora e a linha está em bom estado. Quem, lá atrás, dorme nos compartimentos-cama, vai agora embalado num andamento suave.

Cá à frente, porém, Ana Belém queixa-se do pior inimigo dos maquinistas – o nevoeiro. De vez em quando deixa de se ver a linha e o farol da locomotiva ilumina uma parede branca que quase encadeia. À nossa frente apenas esta névoa espessa. Depois o banco de nevoeiro desaparece e regressa a monotonia das rectas.

São horas de descansar. Os compartimentos da Gran Class têm cama e uma casa de banho privada com duche. Há toalhas, estojo de higiene, jornais e revistas, uma cama confortável, luzes de presença. Um hotel sobre carris.

Lá à frente, na cabine da locomotiva, a solitária Ana Belém zela por todos os passageiros deste comboio nocturno.

 

 

27.11.2015

8h40

O duche retemperador dá lugar a um pequeno-almoço com vista para uma paisagem montanhosa e verdejante. Atravessamos o País Basco. O traçado da linha é, naturalmente, sinuoso com muitas curvas e túneis e pontes. É agradável saborear o também retemperador café com leite e croissants e apreciar pela janela “postais ilustrados” que parecem os Alpes suíços. Em poucos minutos alternam paisagens rurais e bucólicas com cidades industriais encavalitadas em apertados desfiladeiros.

Na carruagem restaurante há uma nova tertúlia. Debate-se agora a excelência (a palavra é essa) da engenharia ferroviária portuguesa, que dá cartas na inovação, mas falta-lhe saber vender-se. Um cluster ferroviário, composto por quase meia centena de empresas portuguesas, está agora a tentar dar esse passo, inserindo-se em projectos internacionais.

O Sud Expresso chega a San Sebastian. À tabela. São 10h55. Pela janela da carruagem desfila agora um cenário industrial e portuário com fábricas, armazéns, terminais. Dentro de 20 minutos chegamos à estação fronteiriça de Irun. Depois, lentamente, o comboio atravessa a ponte fronteiriça que separa a Espanha da França e imobiliza-se em Hendaya.

Nesta estação, o tratado de Schengen nunca foi 100% assumido. É habitual a polícia esperar os passageiros do Sud e controlá-los um a um. Mas, paradoxalmente, hoje circula-se livremente pela estação, se bem que é preciso descer e subir escadas para passar da plataforma espanhola para a plataforma francesa. Mas ao lado, na ponte rodoviária, as autoridades controlam todos os veículos.

 

 

27.11.2015

14h45

São exactamente 14 horas e 45 minutos quando o TGV n.º 8544 parte da estação de Hendaya. A composição portuguesa, perdão, espanhola, ficou na fronteira e a viagem prossegue agora na coqueluche dos caminhos-de-ferro franceses.

Em França, o TGV é um comboio normal, sem qualquer glamour, que por vezes é como se fosse um suburbano. Em Paris, às sextas-feiras à tarde, há TGVs a saírem de dez em dez minutos para Lyon.

É silencioso, confortável. E é tudo. A viagem agora não tem história. Pára-se em Saint Jean de Luz, em Biarritz, em Bayonne, em Dax. É um “pára-arranca” monótono numa paisagem igualmente monótona. As landes da Aquitânia não são interessantes e, como seria de esperar, o tempo está cinzento e húmido.

Só lá mais para frente, depois de Bordéus, o TGV que agora circula a 160 km/hora dará um ar da sua graça e se lançará numa correria de 300 km/hora até Paris. Por enquanto, é um comboio não muito mais rápido do que os outros, mas que se vai enchendo em cada paragem.

Cá dentro, nos assentos decorados em tons púrpura, reina um silêncio que contrasta com a animação do comboio que vinha de Lisboa. Os franceses são assim. Muito polidos. Falam muito baixinho. Não se passa nada nas carruagens. Apenas se ouve o teclado de quem trabalha nos portáteis.

José e Ana vão, eles próprios, também calados, olhando a bruma pela janela. São de Trancoso e embarcaram em Celorico da Beira à 1h20 da manhã. Viajaram na carruagem-cama, tomaram o pequeno-almoço no bar do Sud e agora mudaram-se para o TGV. Só lhes resta esperar que as horas passem até chegarem a Paris.

José trabalhou em França durante 40 anos. A sua história é igual à de muitos portugueses que nos anos de 1960 passaram a fronteira “a salto”. Fê-lo em 1968. Encontrou trabalho em Paris na construção, mas mais tarde foi porteiro. Quarenta anos depois reformou-se, regressou à terra, mas em solo francês ficaram três filhos e dez netos. É essa a razão pela qual José e a sua mulher, Ana, encetam duas a três vezes por ano esta viagem da Beira Alta a Paris.

“Dantes vínhamos de carro, mas desde 2002 vimos sempre de comboio. Gostamos mais. É mais caro, mas a gente gosta de vir assim.” José e Ana pagam mais de 300 euros por um bilhete de ida e volta, mas nada os faz mudar para o desconforto do autocarro. Apanhar o avião no Porto também não compensa. O Sud é agora o seu elo de ligação a França.

Na bagagem — adivinhe-se! — trazem umas chouriças e vinho. “Vinho que fui eu que o fiz”, diz José. Que conta que, entre tantas idas e vindas a França, nunca teve nenhum problema nos controlos fronteiriços. Excepto uma vez em que os franceses implicaram com o vinho. “Trazia cinco litros de aguardente. Mas só implicaram com o vinho”, conta.

 

27.11.2015

19h25

Para os menos habituados a estas andanças, o TGV desilude. A comitiva boceja, dormita, impacienta-se. Já saímos há quatro horas de Hendaya e o comboio não passou dos 198,7 Km/hora. Passou-se Bordéus, Tours. Anoiteceu. O TGV está prestes a entrar na linha de alta velocidade porque até então circulou numa via convencional, mas a excitação inicial em relação ao comboio francês diminuiu. Ninguém esconde que tem pressa em chegar.

O comboio vai cheio. Em rigor este não é um TGV, mas sim dois, porque a composição é formada por dois ramos que seguem acoplados. Doze carruagens. Mil pessoas a bordo.

Para a carruagem-bar afluem passageiros mais jovens. É o sítio mais animado do comboio. Bebe-se cerveja, comem-se sandes. O ambiente é descontraído. Nas outras carruagens reina o silêncio francês.

 

27.11.2015

19h45

É agora, que passamos St. Pierre des Corps, que finalmente o TGV acelera. Anda uns bons minutos na casa dos 220 km/hora, o que leva os quadros da CP presentes a comentar que essa velocidade qualquer Alfa Pendular faz. Mas a cifra vai aumentando progressivamente. 270, 280, 290. Sente-se claramente a aceleração, a vertigem da velocidade. As luzes passam feéricas ao nosso lado.

Mas ainda assim não passámos dos 296 km/hora. A malta impacienta-se. Afinal não há mais nada para fazer a bordo, esgotadas as conversas e lidos os jornais e revistas. As atenções concentram-se num tablet que lê a velocidade do comboio. Mas o TGV desilude. Queda-se pela casa dos 290 e só por um décimo segundo o GPS marca os 299 km/hora.

A esta velocidade o maquinista não consegue estar atento aos sinais. Por isso, a linha do TGV não tem postes com sinais luminosos. Toda a sinalização está incorporada no computador de bordo e é por esta que o condutor tem de se guiar. Ele sabe a cada momento qual a velocidade imposta em cada troço. O próprio comboio reduz ou aumenta a velocidade para adequá-la àquela que o maquinista impõe. Se ele falhar, se passar os limites permitidos, o comboio pára de emergência. Na verdade, o maquinista não é um condutor do comboio. É um gestor de condução.

Mais perto de Paris circulamos ao lado de uma auto-estrada e é aí que que verdadeiramente nos damos conta da velocidade — os carros, mesmo os mais rápidos, ficam para trás num ápice. O TGV ultrapassa tudo numa marcha imparável. Mas teima em não chegar aos emblemáticos 300 km/hora.

Os passageiros começam a levantar-se e a dirigirem-se para as portas. Viajamos agora em túnel no subsolo de Paris. O TGV n.º 8544 reduz progressivamente a velocidade. E às 20h41, com oito minutos de atraso, entra suavemente na gare de Montparnasse. Bonsoir, Paris.

 
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