A noite é para sobreviver

Onde na peça anterior havia paus e pétalas, agora há pneus e uma chuva de confetti. Noite, a nova criação da Circolando, é uma estrada escura por onde três bailarinos e um DJ se aventuram às vezes demasiado depressa, no limite de todas as forças, antes que chegue a manhã seguinte.

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A luz vagueia pelo palco como um farol perdido na escuridão da noite. É uma luz nervosa, uma luz à procura, como André Braga, Paulo Mota e Ricardo Machado desde que há uns meses resolveram aventurar-se na noite – o lugar “de excesso, velocidade e exaustão” que devorou a poesia de Al Berto que primeiro os atraiu até lá e que depois foram largando como uma pele curta de mais, mas também o lugar de todas as possibilidades, pelo menos até ao nascer do sol.

Não parece o lugar mais indicado para se procurar a luz – mas é verdade é que é na escuridão que os clarões são mais violentos, mais incandescentes (isto, claro, no caso de as luzes se acenderem, porque há de haver por aí apagões verdadeiramente intransponíveis). Para uma companhia como a Circolando, que fez da experimentação em campo aberto o seu instável território de busca e salvamento numa zona das artes performativas entre o teatro, a dança e o novo circo, este “estar desconhecido” que é o do movimento na escuridão e da descida do corpo às profundezas da noite mais cerrada pareceu poder fazer “surgir o puro ímpeto criativo” necessário para fazer frente à manhã seguinte. Noite, a peça que a companhia de André Braga e Cláudia Figueiredo estreia hoje e amanhã no Teatro Municipal Rivoli, é o caminho encontrado nesse processo. Um caminho novo, mas que dá sequência, numa progressão geométrica, à série iniciada em 2012 com Areia, em que André Braga se debatia sozinho contra um país a ruir, e depois prosseguida com Paus e Pétalas, em que a aventura de sobreviver à ruína se fazia a dois (de novo André Braga, então com Ainhoa Vidal), e, agora a três, neste descampado onde a avalanche tanto pode ser de pneus como de confetti, como se os corpos deles (corpos masculinos até que de repente, numa dessas noites…) tivessem de resistir a tudo.

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Três homens em esforço numa arena quadrifrontal cheia de pneus: é assim a Noite da Circolando Paulo Pimenta

Também é feita disso, dessa aproximação ao limite, a Noite da Circolando. Desde o início que a maneira como estes três corpos se fazem à vida apesar dos obstáculos parece sugerir que mais cedo ou mais tarde haverá sangue, e há mesmo. “É uma coisa que associamos à noite: ires ao teu limite, ires ao outro lado. E a partir do momento em que pomos cem pneus em palco é impossível não ficarmos rebentados. Mas aguentamos – aguentamos as duas horas. E acho que mais do que a energia do momento da exaustão nós aproveitamos a energia do momento a seguir, em que já não estás em esforço mas o ritmo cardíaco continua acelerado”, diz André, apesar de tudo vivo depois de mais um ensaio.

Rentes ao chão, como cães e gatos no limiar da raiva, ou frente-a-frente, as mãos enfiadas em luvas de boxe e o olhar como que possuído pela electricidade estática do amor-ódio pelo adversário (a caça, o boxe e outros tropismos da noite selvagem são estações que esta peça frequenta muito), os três são carne para canhão exposta ao olhar panóptico dos espectadores. Em cima do palco, o público cercará por todos os lados a arena quadrifrontal onde se movem para sempre vigiados, como num curral ou num ringue de boxe: “Um lugar de exposição, e de exposição violenta”, diz Cláudia, explicando que a palavra arena foi uma das primeiras a aparecer quando ainda andavam em viagem pela noite de Al Berto e por outras noites. “Um lugar de que não temos fuga, onde não temos como virar costas”, acrescentam eles.

Por essa altura, o nosso olhar já estará mais do que habituado e então eles têm de facto razão, vê-se mesmo melhor no escuro.

A manhã seguinte
A noite – e em particular a noite de Al Berto, também ela sobre-exposta, que foram buscar muito “pela ideia de subúrbio, e dos subterrâneos da cidade” –, a arena, os pneus, tudo isso estava lá quando a Circolando decidiu começar a viagem. O DJ-palhaço (André Pires, o quarto homem em palco, que ali levanta toda a banda-sonora e com ela a própria peça) também. Depois os materiais foram-se acumulando nas redondezas, enquanto eles raciocinavam (e improvisavam) em roda-livre: buraco negro, fuga, excesso, velocidade, auto-estrada, velocidade. “E a luz, as luzes. O néon, os faróis dos carros, os faróis do mar – que também vêm da noite do Al Berto, próxima do mar, ali em Sines. Até que nos fartámos do Al Berto e decidimos afastar-nos. Ficou o que tinha de ficar, queríamos estar mais soltos.” E vieram as luvas de boxe, as cabeleiras, a máscara de palhaço, a cabeça de cão. Veio o pó. Veio a chuva de confetti. E tudo ferveu como na verdade já fervia nas peças anteriores, porque não podia deixar de ferver: “Acho que esta raiva já está há algum tempo connosco. Andamos todos um bocadinho irritados com muita coisa que se passa fora da sala de ensaios – dos refugiados à Síria, do nosso Governo à nossa cidade. Mas sim, há muita revolta na noite – a noite é selvagem, tanto na floresta como na cidade, tanto no mar como no espaço interestelar. É a revolta do relâmpago, do vulcão e da terra a explodir, também, que aliás vamos querer continuar a explorar”, admite André.

A noite serve para isso: para ter ideias, todas urgentes, todas possíveis, pelo menos até ao nascer do sol. “Nós que somos jovens e urbanos saímos à noite e é só projectos e ideias. À noite somos capazes de tudo. O problema é a ressaca da manhã seguinte.”

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