Terra do demo e de faunos

Evocativo da escrita e dos ambientes de Aquilino Ribeiro, O Coro dos Defuntos é o retrato de uma certa ruralidade portuguesa nas décadas de 60 e 70 do século passado. O melhor dos Prémios Leya

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Este é, muito provavelmente, o melhor de todos os romances vencedores do Prémio Leya Arquivo Fotográfico Municipal Figueira da Foz

Atribuído pela primeira vez em 2008, o Prémio Leya – no valor de cem mil euros, o maior prémio literário português – distingue anualmente um romance original escrito em língua portuguesa. Desde então (com excepção de 2010, ano em que o júri entendeu que nenhum dos originais a concurso era merecedor da distinção) o prémio foi atribuído a um autor brasileiro, a um moçambicano, e a cinco portugueses. O Coro dos Defuntos, de António Tavares (n. 1960), foi o vencedor deste ano. O autor não é um estreante: finalista de um concurso anterior viu publicado As Palavras Que Me Deverão Guiar Um Dia (Teorema, 2014), romance de “formação” onde são já bem notórias a capacidade da composição narrativa e a versatilidade da escrita, e ainda o à-vontade com que dirige as expectativas do leitor.

Ao abrir O Coro dos Defuntos deparamos com uma epígrafe do livro Aldeia, de Aquilino Ribeiro, e na folha seguinte o autor informa-nos que este é um romance evocativo da obra do mestre. Basta ler as primeiras páginas para o leitor se aperceber que está de volta às “terras do demo”, àquelas covas perdidas nas serras em que “os antigos permaneciam entre os vivos, apesar de os enterrarem num cerro a duas léguas”, àquela “terra da Beira, onde faunos havia tal como o Aquilino os tinha predito”.

Numa linguagem aquilineana (há um glossário (!) no final do romance), António Tavares faz de O Coro dos Defuntos um retrato, por vezes com traços caricaturais, de uma certa ruralidade portuguesa: atávica, presa ao “pensamento mágico”, fechada sobre si própria. Num tempo preciso (entre 1968 e 1974), aquela aldeia é, de uma forma ou de outra, todo o Portugal rural, com as suas muitas manhas e algumas poucas virtudes. O autor bastas vezes ironiza, exagera nos traços, sublinha o risível, realça a religiosidade pagã (quem não conhece esta realidade poderá pensar que se trata de um recurso estilístico à moda do ‘realismo mágico’). A citação seguinte exemplifica o que se acabou de dizer sobre a aldeia: “(…) que aquele era um povo salafra, atufado de maus modos e guerras vorazes, capaz de matar por uma leira ou um botaréu. Um rebanho que se deixava endurecer no rijado dos rochedos e dos pedriçais, desconfiado como os lobos e vestido das melhores manhas raposeiras, sabendo escapulir-se na borraça como ninguém. Se adoecesse curava-se de mezinhas e de rezas e, em ultimo caso, procurava um bajanco que fosse certo e não se pusesse com artimanhas e desculpas a enfeitar o fracasso. Vivia de pouco, (…) e não se perdia em conversas íntimas porque a vida é de cada um. O mundo era a sua aldeia (…).”

António Tavares manipula com bastante talento o imaginário da ficção (aliado a uma qualidade e segurança de escrita muito pouco usual), e faz da aldeia (ou do país) a personagem principal do romance – as vidas das outras personagens estão em movimento continuo, sempre de passagem de um ponto a outro. Assim sucede com Manuel Rato, “o pensador animista”, que duas vezes vai da aldeia até Fall River, na América, ou da sua irmã, que vai para a Suíça, volta e torna a ir. As restantes também não param, e de entre elas destaca-se a beata Olivita, coleccionadora de pagelas de santos que, depois de aparecer a um pastor em cima de uma avelaneira (e de, literalmente, esta lhe ir depois aterrar de joelhos diante), se transforma numa odalisca mantida com casa posta por um construtor de Viseu.

A aldeia é um espaço fechado, mas permeável. As notícias do mundo chegam-lhe por algumas folhas de jornal que o peixeiro lá deixa, mais tarde pela televisão. É o ano em que Salazar caiu da cadeira, a Guerra Colonial continua, há emigração a salto e contrabando, nos anos seguintes o Homem chegará à Lua, atletas israelitas serão mortos nos Jogos Olímpicos, Io Apoloni aparecerá em biquíni na capa da revista Plateia, continua o Festival da Canção (Simone e a Desfolhada, Paulo de Carvalho eDepois do Adeus), Marcelo Caetano é o novo Presidente do Conselho, numa capela em Lisboa fecha-se gente contra a guerra no Ultramar, Spínola escreve “Portugal e o Futuro”. Tudo isto passa por conversas na tasca, “o divã freudiano da aldeia”.

Curioso, e bem conseguido, o recurso narrativo adoptado por António Tavares para o romance: um narrador que exerce a sua função por interposição de um outro narrador – no caso, narradora. O “diz-se que” da oralidade aldeã, a forma como as histórias passam de uns a outros quando já não há todas as certezas sobre os acontecimentos, porque o tempo as foi tornando mais turvas, é no romance substituído por um “Diz ela” (grafado em itálico). Este “ela” é a neta do regedor e da “bruxa” da aldeia – a que chegou um dia a dizer “que o Salazar havia de cair e dar com a cabeça numa pedra”. Esta forma narrativa provoca um distanciamento do narrador à aldeia, parecendo dar-lhe assim a “legitimidade” (como se ela fosse necessária) para o exercício da caricatura e da ironia.

É sabido que “o povo é danado para ver carantonhas nas penhas ou nos rochedos”, ora do demo, ora de Jesus ou de Maria. Um dos aspectos, para além do literário, mais interessantes deste romance, é a abordagem feita à religião popular – ou por outras palavras, de como o Cristianismo incorporou ao longo dos séculos a religiosidade pagã no seu corpo ritual. É essa sensibilidade de etnólogo que se percebe em frases como “o rochedo tinha sido transformado num altar pagão”, ou no episódio, em que o povo acredita (e começa um culto), do desaparecido Manuel Rato viver dentro de um rochedo, sem qualquer abertura para o exterior.

O Coro dos Defuntos termina com a revolução dos cravos. A aldeia, que havia tempos começara a ter notícias de que as coisas tinham começado a andar de cabeça para baixo, recebia agora os primeiros sinais de que “o mundo das bruxas e das ladainhas, das rezas e dos dizeres, dos fumos e das incandescentes pedras de borralho, estava para ser abalado”. Este é, muito provavelmente, o melhor de todos os romances vencedores do Prémio Leya.

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