Howard Eynon viajou, é tudo o que precisamos de dizer

Em 1974, um músico e actor australiano gravou um disco peculiar. Escapou ao radar público – mas não aos ouvidos de Mick Jagger ou Hunter S. Thompson. Quatro décadas depois, está de volta. So If I'm Standing In Apricot Jam passa esta quinta-feira à noite pela ZDB.

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Howard Eynon dr
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No momento em que falou com o PÚBLICO, Howard Eynon está a um dia de dar o seu primeiro concerto, descontando duas pequenas actuações “de aquecimento” na Austrália. “Sinto que tenho um trabalho inacabado para completar e que chegou a oportunidade para o fazer”, diz. O primeiro concerto de Howard Eynon. Em 35 anos, entenda-se. É muito tempo. Será mesmo? “Abrindo uma porta, pode-se aceder ao quarto que habitámos em qualquer período da nossa vida. Soa um pouco assustador, mas é assim que funciona”. Howard tem vários quartos à escolha.

Nascido em Inglaterra e emigrado para a Austrália rural aos 11 anos, dará um dos seus primeiros concertos depois das três décadas e meia de silêncio em Lisboa, na Galeria Zé dos Bois (22h, 8 euros, Alek Rein na primeira parte). Esta noite, quinta-feira, 26 de Novembro, subirá a palco o autor de So If I'm Standing In Apricot Jam, editado em 1974, álbum de uma folk psicadélica surreal, dramatizada, de uma verve lírica entre a alucinação, o humor e o comentário social (Syd Barrett ou Donovan são possíveis pontos de referência), a que os coleccionadores devotavam culto fervoroso (chegaram a ser pagos 1000 dólares por uma edição original).

À data do seu lançamento numa microscópica editora, a Basket Records, desapareceu sem deixar rasto. Ou quase. “Circulou de uma forma muito peculiar”, conta o seu autor. “Chegou a uma série de sítios interessantes no mundo. Viajou, é tudo o que posso dizer”. Viajou, é certo.

Em 1975, quando os Rolling Stones aterraram na Austrália para a sua primeira digressão no país, Mick Jagger foi rápido a revelar os seus planos para ocupação de tempos livres. “Estava a pensar ir à Tasmânia provar essa geleia de alperce [apricot jam]”. No ano seguinte, quando Hunter S. Thompson, o rei do jornalismo gonzo, chegou aos antípodas para dois espectáculos, um em Sidney e outro em Melbourne, Howard Eynon foi o convidado, sem saber muito bem porquê, para tocar na primeira parte dos espectáculos do autor de Fear And Loathing in Las Vegas. Que So If I'm Standing In Apricot Jam viajou por sítios interessantes é uma evidência. Sabemo-lo agora porque em 2014 a Earth Records, 40 anos depois da edição original, decidiu celebrá-lo com uma reedição – e o álbum partiu novamente em viagem. Mas, afinal, que álbum é este? E quem é o seu autor?

Howard Eynon cresceu na Tasmânia. O pai, reformado de uma carreira militar na Força Aérea, emigrara com a família para se dedicar à gestão de uma quinta. Dali saíria Howard adolescente, montado numa mota qual Easy Rider solitário, para descobrir novos horizontes na grande cidade (Melbourne, no caso). Foi actor, fez trabalho em televisão, compôs canções. O trabalho de representação em companhias teatrais e a música andavam lado a lado, o que se reflectiria nas canções que gravou em So If I'm Standing In Apricot Jam - também a música era, para si, pôr em cena. “A magia da música está no momento. Subia a palco sem planos para o que fazer a seguir. Não tinha nenhum plano além daquele presente”, conta. “Não era muito organizado. Basicamente, acho que era preguiçoso”, concede com mais uma das gargalhadas que pontuam a entrevista.

Entre os palcos, já integrado na Tasmanian Theatre Company, e as canções que compunha para algumas das peça, surgiu o convite do produtor Nick Armstrong. Durante três meses, nos estúdios Spectangle, em Richmond, foi passando para fita as canções que acumulara ao longo do tempo. “Todo o ambiente era fantástico. Nick Armstrong era um mestre da gravação analógica, conseguia atingir qualquer som que imaginássemos”. Howard e uma guitarra. Howard, que sabia exactamente o “som e o ambiente” que desejava para as canções, a abrir-se à colaboração: surgem bateristas, flautistas e violinistas, ouvem-se metais ou teclados para, sem macular a natureza acústica da música, acrescentar novas tonalidades ao disco.

À época, partilhava uma casa com alguns colegas actores e de outras artes. “Não era exactamente uma comuna, mas era um tempo especial. O Tolkien, por exemplo, era de grande importância no nosso grupo na altura. Toda a gente tinha lido o Senhor dos Anéis”. O interessante no disco é que esse desejo de sonho surge acompanhado de uma consciência aguda do mundo real que espreitava do outro lado. Em Roast pork, por exemplo, o coro muito humano canta “we don't want to go to the abattoir” antes de entrar em cena a melodia de Somewhere over the rainbow, corrompida por roncos suínos em fundo. Commitment to the band, por sua vez, corta o desejo de escapismo com a consciência de que as grilhetas sociais são demasiado fortes para que escapar seja verdadeiramente uma possibilidade. “Os governos sendo governos e estando as pessoas condicionadas a agir de determinada maneira...O sistema precisa de escravos e eu tentava escapar à escravidão irracional”, comenta, antes de uma pausa e de nova gargalhada: “Era isso. Estava a falar para os escravos, pá!”

A maioria dos “escravos”, porém, não o ouviram. No país “muito conservador” que era a Austrália daquele tempo e sem o apoio de uma editora de dimensão considerável, Howard Eynon estava confinado às bolsas contraculturais. “Era muito despreocupado e descobrira a marijuana e os cogumelos, que achava que eram uma coisa maravilhosa que devia ser divulgada a mais pessoas. Quem quer que fosse que mexia os cordelinhos da indústria não apreciava essa atitude”. A música continuou presente, mas Howard não daria sequência ao disco de estreia.

Em 1979, iríamos descobri-lo noutro local inesperado, no set de Mad Max, o clássico sci-fi de George Miller em que desempenhou o papel de um dos vilões, Diabando. “Tinha a ideia de produzir qualquer coisa no futuro e a única razão pela qual me meti naquilo foi por querer conhecer a indústria [do cinema] por dentro”, confessa. Não foi tempo perdido. “Foram seis semanas interessantes. O ambiente criado era tal que, durante todo aquele período, fomos literalmente aquelas personagens – mas sem magoar ninguém ou danificar o que quer que fosse”. Três anos depois, participou num western, The Man From Snowy River, e, em 1986, em The Quest. Depois, recolheu à normalidade. Família, filhos: “fiz a escolha certa, porque havia coisas que precisava de aprender e passei por muitas coisas maravilhosas, coisas normais da vida”.

Até que, certo dia, um amigo enviou-lhe um link para uma página do eBay com o seu disco classificado como item de coleccionador. “Foi um choque e uma surpresa. Percebi que havia gente que gostava mesmo do disco e que o classificava como 'acid-folk' e outras categorizações igualmente estranhas”. Chegou posteriormente o pedido para uma reedição e, agora, Howard Eynon está de volta aos palcos, 35 anos depois, para tocar as canções de So What If I'm Standing In Apricot Jam. Para dar continuidade a um trabalho inacabado. “Tenho material mais que suficiente para um novo álbum. Acho que vou trabalhar no conceito de uma ópera-rock que alimento há muito. A verdade é que comecei pela música e percebi que, se quiser fazê-la, consigo fazê-la”. O concerto desta noite chega para o comprovar. Perante nós. E a si mesmo. 

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