Ordem dos Médicos e internos denunciam irregularidades no concurso para a especialidade

Administração Central do Sistema de Saúde diz que problemas já foram ultrapassados. Estudantes alertam que há menos vagas do que internos e temem criação de uma geração de não especialistas.

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No total existem 1569 vagas, na maior parte dos casos em hospitais Nelson Garrido

O mapa completo das vagas das especialidades disponíveis para os internos de medicina deveria ter sido publicado em Diário da República com dez dias de antecedência para que os interessados pudessem analisar os lugares disponíveis nas várias zonas do país. Contudo, o concurso arrancou na segunda-feira, apenas 48 horas depois da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) ter finalmente publicado online as listas – e que têm vindo a ser sucessivamente alteradas, denunciam os sindicatos médicos, a Ordem dos Médicos e os próprios estudantes. A Ordem dos Médicos fala mesmo em “terrorismo pessoal” contra os internos, com muitos a ficarem de fora. A ACSS desvaloriza as críticas e diz que os erros já foram corrigidos.

O presidente do Conselho Regional do Norte da Ordem dos Médicos diz que a situação não é inédita, mas considera “absolutamente inaceitável o que está a acontecer, sobretudo porque é reiterado”. “Este grupo de jovens vai escolher o que é suposto fazer para o resto da vida e, no mínimo, o momento deveria ter alguma seriedade”, considera Miguel Guimarães. Segundo o responsável, a ACSS não chegou sequer a publicar a lista de vagas em Diário da República, muito menos no prazo estipulado por lei.

Além disso, denuncia que a lista divulgada na sexta-feira à noite tinha falhas nas vagas das especialidades e também nos internos que poderiam concorrer. “O que a ACSS está a fazer é terrorismo pessoal. É irresponsabilidade, por um lado, e incompetência por outro”, insiste. Miguel Guimarães reforça que o concurso arrancou na segunda-feira horas depois do que estava combinado, com falhas na plataforma em que os internos se devem inscrever presencialmente nas administrações regionais de saúde das várias zonas do país.

Mafalda Felgueiras é interna do ano comum no Centro Hospitalar do Porto – Hospital de Santo António e uma das quase 1700 candidatas às 1569 vagas (um número que já subiu e desceu nas últimas actualizações). Ao PÚBLICO, relata “o caos e o desespero” sentido pelos estudantes. A médica lembra que a candidatura é feita por fases, com os melhores classificados a poderem escolher primeiro, pelo que os que se seguem já encontram menos vagas nas listas. Por isso, Mafalda Felgueiras considera que as alterações de última hora nas vagas “comprometem o acesso” a especialidades mais requisitadas.

No seu caso, a escolha deverá ser feita apenas na próxima semana e Patologia Clínica será a área eleita. A especialidade é pouco procurada e não antecipa problemas, mas acompanhou de perto os colegas que se deveriam inscrever nestes primeiros dias. E dá exemplos do que tem acontecido: por erro surgiram vagas de Anatomia Patológica num hospital psiquiátrico no Porto e a lista eliminou todos os internos de Beja. Também houve casos, nomeadamente em medicina geral e familiar, em que se dizia a zona do país em que existiam vagas, mas não a instituição em que seriam colocados. Além disso, lembra que como a inscrição tem de ser feita nas administrações regionais de saúde há estudantes sem tempo de programar a viagem. Com as falhas na plataforma, houve também muitos internos “coagidos e ameaçados” a completar o processo à mão, o que tanto para Mafalda Felgueiras como para Miguel Guimarães “aumenta muito o risco de erro”. Outro motivo de preocupação é a escassez de vagas.

Também o Sindicato Independente dos Médicos, em comunicado, defende que “o processo de escolha da especialidade é um momento de extrema relevância na projecção do futuro profissional dos jovens médicos” e lamenta que “após mais um ano de sucessivos alertas” existam estes erros. “A bem da transparência e porque as graves irregularidades apresentadas não se coadunam com um processo que se pretende organizado, acreditamos que este concurso não reúne condições para prosseguir”, reitera o sindicato.

Questionado pelo PÚBLICO, o presidente da ACSS garantiu que o concurso “é um processo muito acompanhado por todos os intervenientes” e desvalorizou as queixas, dizendo que o processo vai mesmo avançar e que será concluído na data prevista: 4 de Dezembro. Rui Santos Ivo admite que a lista foi divulgada mais em cima da hora “do que o desejável”, mas considera que muita da informação é conhecida pelos internos antes de ser divulgada, até porque as vagas são estipuladas pela própria Ordem dos Médicos “tendo como base as capacidades formativas” das várias instituições.

“O processo está agora a correr com normalidade”, assegura o responsável da ACSS, que garante que no próximo ano, devido a algumas alterações legislativas, será mais fácil a candidatura. Quanto à revisão do número de vagas, Rui Santos Ivo contrapõe que as mudanças decorrem do “esforço” deste organismo de “levar ao limite” a procura de lugares e lembra que só não existem mais porque a própria Ordem dos Médicos considerou que as capacidades formativas dos hospitais e centros de saúde eram estas. Assim, o mapa final tem 1569 vagas, sendo 1046 de especialidades hospitalares. Na segunda-feira fizeram a sua escolha os primeiros 58 médicos internos. Na terça-feira concluíram o processo os “candidatos classificados da 59.ª à 287.ª posição.

“Geração de indiferenciados”

É precisamente no total de vagas, mais do que nos erros, que o presidente da Associação Nacional de Estudantes de Medicina (ANEM) foca as preocupações. Alberto Abreu da Silva, tal como Mafalda Felgueiras e Miguel Guimarães, teme a criação de uma “geração de médicos indiferenciados”, que ao não terem acesso a uma especialidade acabam a trabalhar como tarefeiros, nomeadamente nos serviços de urgência. O representante dos estudantes compreende que as instituições não tenham capacidade para formar todos os internos, mas culpa também a fusão de grandes centros hospitalares e os cortes orçamentais pela situação.

Miguel Guimarães admite que o problema vai piorar nos próximos anos, mas também alerta que o Serviço Nacional de Saúde não está a atrair profissionais suficientes. Em 2016 prevê-se que existem mais de 2000 internos para a mesma capacidade de vagas. Alberto Silva diz que a ANEM já está a preparar um desafio para o Governo de António Costa: reavaliar as necessidades do país e reduzir o numerus clausus em Medicina.

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