Há uma equipa que tenta salvar vidas de crianças pelo telefone

Desde 1988, a Linha SOS-Criança já ajudou mais de 116 mil crianças e jovens. Por dia, são cerca de 10 chamadas recebidas. São histórias, tristes, trágicas, “de alguém que está em sofrimento”. Este domingo, o serviço telefónico comemora 27 anos.

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ADRIANO MIRANDA

Quando ouviu o desabafo daquele menino que lhe ligara, Maria percebeu de imediato que este seria mais um caso difícil. Do outro lado da linha estava uma criança que lhe falava sobre a dor que sentia pela morte da mãe, sobre a família que o culpabilizava por essa morte, sobre o pai ausente, sobre como era difícil viver num país diferente e não ter ninguém. Quando estava menos triste, contava também os sonhos que tinha e falava sobre os amigos da escola. Mas, quando se lembrava das saudades que tinha da mãe, chorava. Apesar de estar na equipa da Linha SOS-Criança há cerca de 10 anos, e de ter por isso acompanhado inúmeras histórias dramáticas, Maria não conseguiu ficar indiferente ao sofrimento deste menino. O caso levantava questões delicadas. O pai não aceitava que a criança falasse sobre a morte da mãe com os técnicos da SOS-Criança, o facto de viver fora de Portugal dificultava o acompanhamento e, sobretudo, havia também o risco da criança se afeiçoar em demasia a Maria, numa tentativa de colmatar a perda da mãe. Isso poderia comprometer não apenas o apoio da técnica da linha SOS-Criança, mas sobretudo poderia prejudicar ainda mais o estado emocional do menino.

Desta vez foi uma criança, mas os adultos também ligam para o 116 111, uma das linhas do serviço telefónico criado pelo Instituto de Apoio à Criança (IAC) há exactamente 27 anos atrás. A linha é gratuita, funciona das 9h às 19h, e a denúncia pode ser feita de forma anónima. Apenas se identifica quem quer. Alguns telefonam para denunciar casos de violência ou negligência na própria família. São tios, avós, primos ou irmãos. Por vezes, é até um dos pais quem denuncia o próprio companheiro. São sobretudo as mães. Quando não são pessoas da mesma família, são professores, educadores ou até vizinhos. Noutras situações são simplesmente pessoas, homens ou mulheres, que assistiram a algum tipo de abuso.

Em média, a equipa da Linha SOS-Criança recebe 10 chamadas por dia. Algumas chegam a durar mais de uma hora. Uma tarefa exigente para uma equipa de apenas cinco técnicas. São psicólogas, assistentes sociais e, por vezes, têm de ser educadoras de infância ou mediadoras escolares. O IAC disponibiliza ainda gratuitamente um serviço jurídico e também acompanhamento psicológico nas suas instalações. Existe ainda a linha SOS-Criança Desaparecida (116 000), um segundo número gratuito, que funciona 24h por dia e 365 dias por ano, criado para combater situações de desaparecimento, rapto ou abuso sexual. No ano passado, esta linha recebeu quase 300 apelos relacionados com situações de possíveis vítimas de violência sexual. Para além do telefone, os apelos chegam também através do e-mail iac-soscriança@iacrianca.pt, disponibilizado pelo instituto desde 2011. São histórias de violência física e psicológica, casos de pais que não têm dinheiro para dar de comida os filhos ou também apelos desesperados de pais que não sabem como lidar com os filhos.

 “São histórias tristes”, conta Maria - nome fictício por questões de segurança -, são apelos de alguém que está “em sofrimento, em situação de grande perigo, casos de maus tratos ou de negligência”. “Por vezes, temos a sorte de acompanhar histórias tristes que acabam por ter um final feliz, mas não é vulgar”, explica a técnica ao PÚBLICO. São casos dramáticos e angustiantes, que deixam por vezes a equipa da Linha SOS-Criança de “coração dilacerado”. Uma vez foi uma mãe que dizia pelo telefone que ia para o Estádio Nacional do Jamor, em Oeiras, para matar os dois filhos. Outra vez foi uma mulher que contou que o marido dizia-lhe por telefone que ia espetar uma faca no coração do filho. Noutra altura foi alguém que colocou as mãos de uma criança num forno quente, porque essa criança tinha mentido. Há também casos de crianças que tinham o corpo coberto de marcas de chicote ou queimaduras de cigarro.

No momento em que desligam o telefone, as reacções são muito variadas. Por vezes raiva, outra vez indignação. “Depois de muitos anos, e quando pensamos que já ouvimos de tudo, ainda surgem situações que nos indignam bastante e nos revoltam”, conta Maria. O coordenador da linha, Manuel Coutinho, que esteve na primeira equipa deste serviço, em 1988, diz ao PÚBLICO que cada técnico tem de ter “muito e boa formação humana”. Explica também que quando se deparam com uma história difícil, vão “fazendo a catarse internamente”, vão desabafando uns com os outros. “Infelizmente, a realidade é muito dura”, lamenta.

Ligam apenas falar com alguém
Nos últimos anos, os apelos são cada vez mais complexos e variados. As técnicas notam que “o acompanhamento tem sido muitas vezes difícil”, aponta Maria. Os dados do IAC relativos a 2014 mostram que a maioria das chamadas (64%) foram feitas por crianças que se sentiam sós e apenas queriam “falar com alguém". “As crianças passam muito tempo numa solidão acompanhada. Estão em casa, acompanhadas, mas não se sentem à vontade para falar com essas pessoas”, alerta Manuel Coutinho, psicólogo clínico e também secretário-geral do IAC, explicando que, apesar de um decréscimo do número de apelos, “há um aumento do número de intervenções para cada caso”.

No ano passado, chegaram à equipa do IAC 5799 novas situações. Os dados do instituto mostram que 25% destes casos dizem respeito a pedidos de “prevenção e apoio”, efectuados por “crianças com dúvidas existenciais” ou adultos que procuram ajuda, explica Manuel Coutinho. Vinte por cento são apelos de “crianças em risco”, 18% são casos de negligência infantil, 12% dizem respeito a “vítimas de maus tratos dentro da família”, 9% são de violência psicológica e 8% de questões relacionadas com a “regulação do exercício das responsabilidades parentais”.

Quando recebem uma chamada, as técnicas tentam perceber o motivo do telefonema e os contornos de cada história. Identificada a problemática de cada caso, passam a procedimentos específicos. Em casos de crianças que apenas ligam para desabafar, procuram dar-lhes apoio emocional e ajudam-nas a encontrar uma solução para o sofrimento, como por exemplo sugerir que conversem com um amigo, uma avó ou alguém com quem se sintam à vontade. Em casos mais difíceis, o procedimento não é tão linear. Nestas situações, depois de recolherem todas as informações, procuram verificar a sua veracidade junto de escolas, de centros de saúde, da polícia ou até de paróquias. Feito esse levantamento, os casos são por vezes encaminhados para a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens e, em algumas situações, para tribunal.

Para Maria, as histórias que mais lhe custa ouvir são as histórias que envolvem bebés. “Quando percebemos que no contexto familiar há maus tratos físicos em crianças com menos de um ano... São situações que mexem muito connosco. É difícil de ‘digerir’. Perceber que o próprio ambiente familiar, que deveria ser seguro e de afecto, acaba por ser o meio mais perigoso. É angustiante”, explica. Quando regressou da licença de maternidade, foi muito difícil para a técnica ouvir alguns destes casos. Houve uma vez que não aguentou e teve de soltar as lágrimas depois de desligar a chamada.

Não é uma relação de amizade
Algumas crianças costumam ligar várias vezes. Por vezes, até mais de uma vez por dia. As histórias são, por isso, já familiares. “Algumas preocupam-nos muito e acabam por mexer muito connosco”, desencadeando emoções que acabam por gerar um grande envolvimento da parte destas técnicas, explica Maria. Mas, tal como numa relação entre psicólogo e paciente, é importante criar uma distância de segurança para não comprometer o apoio. “A nossa postura é sobretudo de escuta, de grande neutralidade e imparcialidade. Longe de ser uma relação de frieza, mas de distanciamento suficiente para podermos dar o suporte. Seja num momento com algumas palavras para tranquilizar, seja noutro para amenizar alguma angústia”, conta.

No caso do menino que perdeu a mãe, foi Maria quem respondeu ao primeiro contacto, que chegou por e-mail. Depois, passaram a conversar por telefone. Estabeleceu-se uma relação de confiança e a criança procurou falar sempre com a mesma técnica. Maria explica que nestes casos as crianças tendem a afeiçoar-se às técnicas, e a vê-las como amigas. Mas é importante estabelecer os limites e explicar-lhes que não pode ser uma relação de amizade. Estão ali para ouvir, apoiar e ajudar a encontrar soluções, tal como qualquer psicólogo. “Tentamos dar suporte, mas não podemos fazer uma abordagem pessoal. Não podemos personalizar”, explica. “Não posso falar da minha vida, porque não é isso que está em causa”, continua. Neste caso, foi importante esclarecer tudo isto logo de início para evitar uma aproximação inadequada que pudesse criar alguns constrangimentos e, mais tarde, levar a uma nova sensação de perda.

A infelicidade está em casa e na escola
“A angústia e a ansiedade que povoa a vida emocional de muitas destas crianças atravessa todas as classes sociais”, diz Manuel Coutinho. “Há crianças de uma classe social que estão muito fechadas em casa e outras que estão muito fechadas na rua. No fundo, a causa é a mesma: solidão”, continua. Mas não é só a ausência dos pais que afecta o estado emocional dos filhos. O coordenador da Linha SOS-Criança lembra que quando se fala de violência doméstica, muitas vezes “não se tem em mente a situação das crianças”, que por vezes “são quem mais sofre”. Às vezes, gera-se dentro de casa “um ciclo de violência”. O psicólogo lembra um desabafo que uma vez ouviu de um menino para ilustrar tudo isto: “A minha mãe diz que o meu pai é um cobarde porque lhe bate. E diz que os mais fortes não podem bater nos mais fracos. Então, por que é que ela me bate a mim?”.

A escola também é apontada por Manuel Coutinho como uma das causas para a infelicidade das crianças e dos jovens. Segundo o psicólogo, existem cargas horárias “brutais” e reina um clima de pressão nas salas de aula. “Criou-se a ideia de que têm de ser as melhores e que o mediano não serve. E isto é um princípio completamente errado. São as notas, os rankings, as horas de matérias… Não faz sentido não haver tempo para as crianças viverem o seu tempo. Estão muito espartilhadas. Não se valoriza tanto as áreas criativas, que fazem parte da natureza das crianças”, diz.

Desde que a Linha SOS-Criança surgiu, há precisamente 27 anos, já milhares de crianças foram salvas pelos técnicos deste serviço. O percurso nem sempre foi fácil. A equipa é reduzida face ao número de apelos que recebem todos os dias e a situação financeira também já foi melhor. “Estamos a trabalhar nos limites”, alerta Manuel Coutinho que faz questão de dizer que é em “situações de crise que os orçamentos devem ser reforçados, pois é nestas alturas que as pessoas mais recorrem às organizações da sociedade civil. Não se pode dar folgas à emergência social”. O Estado tem por isso de apoiar as instituições sociais de forma “regular, atempada e suficiente”. Mas as dificuldades não lhe retiram o orgulho que tem no serviço telefónico que ajudou a fundar: “Tem sido um privilégio. É muito gratificante saber que já ajudámos mais de 116 mil crianças e jovens”. Apesar de tudo isto, a equipa não pára, “há muita vontade e muita determinação”. Sentem que é fundamental continuar a missão. Neste momento aliás, enquanto lê este texto, Maria e as colegas estão por certo a ouvir os desabafos de uma criança a precisar de ajuda, num qualquer sítio do país. Texto editado por Andrea Cunha Freitas

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