Aqui estamos, juntos

1. Nasci num país com fronteiras estáveis há mais de 700 anos. Se a antiguidade de um país é a das suas fronteiras, será dos mais antigos do mundo. Nunca pensei nisto como um feito. A geografia decidiu boa parte da história: de um lado o mar, do outro Espanha. Dado que o mar, em princípio, não tinha um plano para conquistar Portugal, a única fronteira era Espanha, arqui-inimiga por ser a única. E, mais batalha menos batalha, anexa daqui, ocupa ali, noventa e nove por cento da coisa definiu-se cedo.

A fronteira é, assim, a menor das preocupações portuguesas há muito. Ao mesmo tempo, por se ter definido, e sendo a única, tornou-se uma espécie de tampão, fez com que Portugal voltasse costas à Europa. Os ilhéus vão para o mar porque não têm alternativa, os portugueses, ao contrário, tinham uma cauda até Vladivostok mas ao primeiro passo esbarravam em Espanha. Não é a neurose da ilha, solidão sem vizinhos, mas a da finisterra que carrega atrás de si a sombra de um continente, e salta em frente.

Assim se lançou Portugal nas épicas, intrépidas descobertas. Épicas, intrépidas, sem dúvida; mortais, mesmo, para boa parte dos marinheiros; mas descobertas, só do ponto de vista das naus, visto que população já lá havia muita. Por isso, por terem custado milhões de vidas, no extermínio de nativos e no tráfico de escravos, e por tudo o que extraíram e destruíram além-mar, não é possível dizer hoje descobertas ou descobrimentos sem aspas, itálico, ou outro sinal de distância que distinga a linguagem de cada tempo. Uma coisa será entender que durante séculos se empregasse alguma dessas palavras, outra é empregá-las hoje sem sinalizar a sua carga ideológica, como se fossem objectivas, inequívocas. Não são, e isso deveria ter mudado nos discursos oficiais desde que o 25 de Abril pôs fim a 48 anos de ditadura.

Um dos lemas dessa ditadura foi Orgulhosamente Sós, o que diz bem da singularidade de um país periférico pelas circunstâncias, primeiro geográficas, depois históricas, que se fez cosmopolita sem a Europa, avançando para Áfricas, Índias, Orientes, Américas. Se, de um lado, Espanha era a barreira, o mar foi a libertação, o transporte, levando Portugal cada vez mais além. E o melhor legado dessa aventura será reconhecer a que ponto continuamos a ter uma história conjunta com tantos milhões que até hoje falam a mesma língua, uma história fundada em violência, incluindo a da imposição da língua. Impérios deixam fantasmas, dívidas, lutos, não são o passado, são o futuro do presente. A ruína está aí, para a transformarmos, e sermos transformados por ela, até o outro sermos nós.

2. Talvez pela geografia, talvez pela história, talvez porque via água da minha janela, barcos e linhas de comboio até ao horizonte, lembro-me de querer viajar desde sempre. E isso era, enfim, fácil porque a minha geração cresceu depois da ditadura, da guerra colonial, do Orgulhosamente Sós. É a geração dos Interrails, em que ir a Barcelona, Paris, Roma de comboio era tão natural que podia ser um só país, a 2, a 12, a 20. Eu não teria achado má ideia que Portugal se unisse a Espanha, não nos sentíamos encurralados, ao contrário, a Europa abria-se para nós pelo menos até Praga, Varsóvia, Budapeste, a partir de onde o bilhete mudava se quiséssemos entrar na URSS. Ao mesmo tempo, estávamos suficientemente perto do que fora a ditadura para ter pais ou avós que tinham combatido nas colónias de África; ou fugido disso passando a fronteira a salto, ilegais; ou sido presos e torturados pela polícia política; ou exilados em Paris ou Genebra; ou atravessado o Mediterrâneo até ao Magrebe. O arqueólogo Cláudio Torres quase morreu no barquinho onde navegou até Marrocos, com a mulher grávida e cinco amigos. A sua filha nasceu já exilada política, deste lado do Mediterrâneo, de onde agora por mês saem centenas de milhares de refugiados. Só em Outubro, 218.394 chegaram à Europa por mar. O mesmo número que em todo o ano de 2014. E a Europa, dos milhões que se acumulam, alojou nem 120 no momento em que escrevo.

3. Comecei a trabalhar como jornalista vai para 30 anos. A primeira reportagem que fiz fora de Portugal foi por acaso, estava em Moscovo de férias, depois de ter atravessado a Europa de comboio, era Agosto de 1991, Gorbatchov foi raptado, havia combates nas ruas de Moscovo, trincheiras, e a União Soviética desmoronou-se nessas barricadas. Anos depois, apanhei um barco de Ancona para Split e um avião militar de Split para Sarajevo: cerco, guerra, massacre, em plena Europa. A seguir ao 11 de Setembro estive um mês na fronteira entre Afeganistão e Paquistão, sem conseguir passar, no meio do êxodo dos afegãos. Na véspera da Guerra do Iraque, esperei 15 dias na fronteira que a Turquia mantinha fechada, até desistir, voar para Amã, de onde fui por estrada até Bagdad. Morei em Jerusalém, vi os israelitas construírem o muro, os colonos fazerem da Palestina um arquipélago de fronteiras, passei incontáveis horas a atravessar checkpoints, por vezes dias à espera de transpor Erez, a fortaleza que divide Israel de Gaza. E por isso, também por isso, quis ir a Port-Bou, fronteira entre França e Espanha, onde Walter Benjamim morreu, provavelmente suicidando-se, ao tentar fugir da ocupação nazi, porque os guardas queriam obrigá-lo a voltar à França ocupada. Em 2010, voei para Ciudad Juárez, na fronteira do México com os Estados Unidos, então a cidade mais violenta do mundo, uma violência gerada e alimentada pela fronteira, com violações, decapitações e desaparecidos diariamente. No Sul do México, em Ixtipec, vi os milhares de migrantes que atravessavam ilegais desde a América Central, tentavam subir até aos Estados Unidos e morriam pelo caminho, sequestrados, assassinados pelos narcotraficantes. Ao voltar dessa viagem, depois de anos a ver os frutos do imperialismo ou colonialismo dos outros — russo, na URSS e Europa Central; inglês, francês e otomano no Médio Oriente e Ásia Central; espanhol e americano, no México — fui morar para o Brasil, o maior país que Portugal colonizou. Vivi lá até 2014, quase esquecendo que as fronteiras existem, porque no Brasil é fácil esquecer os países à volta. Mas quando a Primavera Árabe começou na Tunísia pensei partir, e depois quando alastrou à Praça Tahrir acabei por aproveitar uma viagem à Europa e voar até ao Egipto. Já em 2015 viajei até uma fronteira recente, a que separa o Curdistão Iraquiano do Estado Islâmico, entre Mossul e Erbil, estive com refugiados cristãos, muçulmanos, yazidis. No momento em que escrevo este texto está confirmado o atentado dos jihadistas que matou 224 pessoas a bordo do avião russo saído de Sharm el Sheikh. O Egipto foi o primeiro país do Médio Oriente onde aterrei porque queria conhecer Alexandria. O PÚBLICO apanhou-me ainda no aeroporto, pedindo-me que voasse para Jerusalém, porque Israel estava a entrar com tanques nas cidades palestinianas. Foi isto na Primavera do cerco à Basílica da Natividade, Cisjordânia em estado de sítio, recolher obrigatório, alguns dos adolescentes que agora estão a morrer nesta re-intifada de 2015 estariam a nascer. Viveram toda a vida em ocupação, como já antes os pais, os avós, os bisavós. E desde que nasceram tudo conseguiu ficar pior.

4. Desde que nasci não tenho grande lembrança de fronteiras caírem, com a importante excepção do Muro de Berlim. Mas dezenas de fronteiras foram criadas, enquanto muitas outras se tornaram lugares de morte, execução, tráfico humano, repressão policial. As mercadorias chegam mais rápido, mais alto, mais longe do que os homens, e quando a emergência da imigração leva os economistas a pensarem duas vezes é para virem dizer que, de facto, facilitar a circulação de homens talvez pudesse ser muito mais produtivo para a economia global. Como se o problema da livre circulação fosse o mesmo que o dos crimes nos livros policiais: a quem pode beneficiar? E não a coacção, a detenção, impedir alguém de se movimentar, de fugir da guerra, da morte, como Walter Benjamim e milhões de judeus foram impedidos.

5. Nas línguas latinas, mas não só, há o prefixo trans. Significa além de, através de, de um para um. Muda dezenas de palavras, criando uma ponte, um gesto que liga, e ao ligar transforma. Além das fronteiras é essa transumância de um para outro que transforma ambos. Até hoje nunca tinha estado na Tunísia, mas, mais do que nunca, fez sentido para mim vir aqui agora, antes de este ano terrível terminar, depois de 22 pessoas terem sido mortas no Museu do Bardo, em Março, e mais 39 na praia de Sousse, em Junho. Trazer, por exemplo, a frase do geógrafo Orlando Ribeiro: Mediterrâneo é até onde se avistam as oliveiras. Uma história além-fronteiras, Norte e Sul, Europa e Magrebe, muito tempo entre as oliveiras. Uma história que não apenas continua como nunca foi tão comum.

Escrevi o que está acima antes do atentado em Beirute a 12 de Novembro que matou 43 pessoas e dos atentados em Paris a 13 de Novembro que mataram 130 pessoas. Reforço, agora: a nossa história comum, nas duas margens do Mediterrâneo, nunca foi tão comum. E, mais do que nunca, essa história implica não voltar costas, não fechar portas, mas uma luta conjunta pela vida em liberdade — luta e acolhimento. Há uma única fronteira pela qual devemos lutar, de facto, cada um e em conjunto, a que separa a humanidade do horror: da tortura, da escravatura, do extermínio. Os crimes do Estado Islâmico são crimes contra a humanidade, contra a vida, em África como no Médio Oriente, na Europa como na América. Fazendo face a isso, estamos todos no mesmo mar, unidos pelo luto e pela vontade de viver. Vir aqui hoje é dizê-lo, em cima das ruínas de Cartago: aqui estamos, juntos.

(A versão francesa deste texto foi lida a 17 de Novembro, em Sidi Bou Said, junto a Cartago, Tunísia, no III Encontro de Escritores Euro-Magrebinos, sobre literatura e fronteiras.)

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