Padre diz que "convento" das alegadas agressões é invenção que Igreja tolerou

Arquidiocese admite que as irmãs não são freiras e que o lugar onde terão ocorrido as alegadas agressões não é um convento. Irmãs assumem alguns "estalos", mas insistem que são freiras. Habitantes de Requião, em Famalicão, foram surpreendidos pelas buscas da PJ.

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Ricardo Castelo/Nfactos
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O padre Manuel Soares Magalhães, há mais de 50 anos pároco de Requião, em Famalicão, garante que o convento da Fraternidade Missionária do Cristo Jovem, onde terão ocorrido crimes de maus-tratos e escravidão é uma “invenção” tolerada há décadas pela Igreja Católica. Manuel Soares Magalhães, de 82 anos, já era o pároco de Requião quando as visões de uma vidente jugoslava sobre a cruz do amor que salvaria do fim do mundo quem a instalasse no jardim de sua casa inspiraram a construção daquele convento, chamado de “Santa Luzia”, em sua devoção.

“Inventaram aquilo tudo. Inventaram o hábito azul das freiras que não são freiras. Andam fardadas. São leigas que se estabeleceram aqui. É uma invenção. O arcebispo está a par e não gosta. O que lá fizeram [alegadas agressões a noviças] não é serviço. Não posso dizer que aquilo funcione à margem da Igreja, mas não está completamente dentro”, diz, voltado para o mosteiro local.

Percebe-se que o assunto o incomoda. “Não costumo lá ir. Fui uma ou outra vez quando me convidaram. E quem lá vai não são os fiéis de cá. É gente de fora. Em 2011, vieram milhares ver uma vidente”, recorda desagradado. Mas momentos depois reforça que é “amigo” do padre Joaquim Milheiro, de 84 anos, que foi quem fundou aquela fraternidade. E que das vezes que lá foi até foi bem tratado. Porque não insistiu junto da arquidiocese para que fossem tomadas medidas relativas à fraternidade? “Elas [irmãs] são bem-educadas. Passam a vida a rezar e a trabalhar”. Mais uma vez, constata-se que a solução na terra foi tolerar o que já existia há anos.

A arquidiocese de Braga, porém, prefere refutar o verbo “tolerar”, considerando que é uma “palavra incorrecta nesta situação”. Mas um dia depois de inspectores da Polícia Judiciária do Porto terem feito buscas naquele edifício, na sequência de suspeitas de que pelo menos seis noviças foram alvo de maus tratos e escravidão nos últimos dez anos, a arquidiocese já desmistifica o que deixara em dúvida num primeiro comunicado. “A fraternidade não é uma congregação nem uma ordem religiosa. As ‘irmãs’ não são freiras” e a fraternidade “tem a forma jurídica de associação de fiéis e, por conseguinte, elas são leigas consagradas”, salientou o porta-voz da arquidiocese, padre Tiago Freitas ao PÚBLICO. A arquidiocese refere ainda que, além de uma investigação interna aberta em 2014, estava também em curso um processo para avaliar se a fraternidade poderia ser reconhecida como uma ordem religiosa.

O equívoco sobre a fraternidade fundada em 1978 perdurou várias décadas e parece só ter sido desfeito esta quarta-feira face às buscas da PJ. “As freiras não são freiras?”, questiona a funcionária da escola primária de Requião. As notícias parecem ter apanhado de surpresa as gentes da terra. “Só soube ontem à noite e desde então aqui não se fala de outra coisa. As pessoas tratavam-nas por irmãs e freiras. Agora de repente, afinal, não são freiras e aquilo não é um convento e havia agressões?”, questiona, ainda surpreendido, Abílio Ferreira, enquanto joga uma partida de dominó numa mesa com mais três colegas no bar da Junta de Freguesia de Requião.

Ao lado, Carlos Araújo, de 48 anos, recorda-se do processo de venda do terreno onde se ergueu o convento que afinal é apenas uma enorme casa, com estátuas e símbolos católicos e com um terreno com mais de quatro hectares. Foi o pai dele que em 1982 vendeu o terreno ao padre Joaquim Milheiro, agora arguido neste processo juntamente com três freiras entre os 60 e os 70 anos. “Já na altura ele disse que era para construir um convento”, salienta. Ao lado, o registo de surpresa que patenteava a conversa dá lugar a um tom jocoso acerca dos contornos da revelação imposta pela investigação da PJ.

“Fiquei surpreendido. Não sabia de nenhuma anomalia lá dentro. Mas aquilo é rodeado de muros altos. Parece que é uma daquelas situações em que o que se passou no convento ficou no convento até agora. Só sei que devem ter ganho boa massa com as cruzes do amor que venderam na década de ‘90”, diz o presidente da junta João Pereira. Naquele tempo, cada Cruz do Amor, com 7,38 metros, chegava a custar 650 contos, o equivalente a agora a 3250 euros.

Durante décadas o equívoco transformou-se num segredo bem guardado. Uma placa no longo portão do convento insiste: “Este convento não é um lugar de turismo, é uma casa de oração”. O portão está vigiado por duas câmaras de videovigilância colocadas em dois pilares gordos que sustentam uma enorme pala triangular que faz as vezes de um telhado. Antes do portão, uma imagem da Nossa Senhora de Fátima dá as boas-vindas a eventuais fiéis. Mas por estes dias, reina o silêncio em redor da casa. Apenas o latir de dois cães que guardam o edifício da fraternidade quebra a quietude. Por vezes, passam também alguns automóveis pela estrada em terra. “Vim aqui ver com os meus olhos aquilo de que falam nas notícias”, explica um condutor. “Nunca vi nada. Só se via pessoas a entrar e pessoas a sair. Não são freiras? E as outras eram agredidas? Essa é boa”, atira um homem que limpa à mangueirada as paredes do aviário em frente à sede da fraternidade.

Para lá dos portões do alegado convento, o mundo é outro. A campainha toca e depois de uma espera de 15 minutos, a irmã Maria Costa fala no intercomunicador. “As televisões estiveram aqui a manhã toda. Não vamos abrir, desculpe. Agora vamos descansar”, justifica-se. Maria Costa aproveita, porém, para esclarecer que a fraternidade “foi criada num apartamento em Lisboa em 1975” - o que é contrariado pela informação da arquidiocese - e para insistir no seu modo de vida. “Ouvi um senhor na televisão, julgo que padre, dizer que não somos freiras. Se não somos freiras, então não sei o que é uma freira”, sublinha. E quanto aos alegados maus-tratos diz que “são conversas fora do contexto”. De manhã, em declarações à TVI, uma das fundadoras da fraternidade, Isabel Silva, admitira que “uma vez ou outra” possa ter “dado um estalozito” às noviças, mas negou a escravidão salientado apenas que o trabalho na fraternidade é pesado.

Na GNR local não há memória de queixas contra a fraternidade. Apenas o registo do um suicídio de uma das noviças há três anos. Foi encontrada num poço e o processo-crime arquivado, mas a recente investigação poderá revelar novos dados sobre o que realmente aconteceu. A denúncia das noviças que deu origem às buscas esta quarta-feira relaciona os maus-tratos com essa morte. Além de alegadamente agredidas e escravizadas, as noviças terão sido frequentemente impedidas de ver a família e, por vezes, de comer. A jovem não terá aguentado os maus-tratos. “Até Cristo foi criticado quando apareceu. Estamos nas mãos de Deus”, desabafa a irmã Maria Costa despedindo-se no intercomunicador.

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