O passado e o presente

More e Amnésia: dois filmes de Barbet Schroeder realizados com quase 50 anos de intervalo, unidos por um mesmo cenário e por um mesmo olhar.

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À partida, para lá do seu realizador, poucas coisas parecerão reunir dois filmes realizados com quase meio século de intervalo: More, objecto icónico da contra-cultura jovem do pós-Maio de 1968 celebrizado em grande parte pela banda-sonora dos Pink Floyd, e Amnésia, meditação outonal sobre o passado que persegue uma exilada alemã em Espanha. Na verdade, contudo, ambos têm o mesmo centro geográfico: a ilha espanhola de Ibiza, e a casa que pertenceu durante meio século à mãe de Barbet Schroeder, onde Mimsy Farmer e Klaus Grünberg se refugiam num idílio alimentado a heroína e onde Marthe Keller se vem esconder do mundo após a II Guerra Mundial. E ambos os filmes usam igualmente essa casa como um refúgio do mundo, um esconderijo enganadoramente intocável e um espelho daqueles que nele vivem – são duas obras que olham para a ideia de enfrentar a vida em pontos diferentes, mas com a mesma lucidez de quem compreende como o tempo nos muda a todos.

Paradoxalmente, o filme mais interessante não é o mais recente. Mesmo marcado muito nitidamente pelo espírito do tempo, More não envelheceu mal; a sua dimensão de film noir solar pós-Nouvelle Vague, com um inocente alemão a deixar-se enredar numa teia de drogas e ilegalidade por amor a uma ingénua fatal, compensa grandemente os pontuais excessos estilísticos. É um filme de jovem, com uma peculiar ressonância Godardiana (Mimsy Farmer tem qualquer coisa de Jean Seberg…); mas o retrato curioso e compreensivo mas sem complacências do idealismo hedonista de uma juventude que acreditava num futuro melhor trai já a intensa curiosidade pelo humano que tem marcado toda a carreira de Barbet Schroeder.

Amnésia, por seu lado, é um filme de velho – um pouco artrítico nas suas tentativas ingénuas de se aproximar à cena tecno de Ibiza dos anos 1990, mas genuíno e até tocante no modo como retrata (lá está) sem complacências nem julgamentos uma crise de consciência. É, também e sobretudo, uma enorme carta de amor a Marthe Keller, comovente e justíssima no papel de Martha, personagem inspirada na própria mãe do realizador, que transporta ainda consigo a culpa que assumiu após o fim da Segunda Guerra Mundial. Quando o acaso a faz cruzar o caminho de um jovem conterrâneo que se mudou para Ibiza ambicionando uma carreira de DJ, Martha vê-se forçada a enfrentar as consequências da sua inflexibidade moral e enfrentar aquilo de que andou a fugir meio século. É por esse conflito interior, que a actriz corporiza com uma generosidade extraordinária e luminosa, que vale a pena espreitar Amnésia.

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