Escolhos imaginários de um governo de esquerdas

Claro que o centro é importante, mas no panorama europeu é muito comum uma alternância de blocos (esquerda vs. direita) e as pontes ao centro fazem-se usualmente através de partidos do centro, não dos socialistas.

Desde os socialistas de direita, passando pela direita política e pelo seu enormíssimo séquito de comentadores e de jornalistas alinhados ideologicamente com ela (vide o artigo do usualmente muito circunspecto provedor do Público, em 14-11-15, chocado com o enviesamento ideológico que se tem verificado, sobretudo nas TVs, no contexto da hipótese de um governo de esquerdas), e acabando na direita dos grandes interesses socioeconómicos (a qual foi, grosso modo, poupada à crise e às políticas de austeridade: lembremos o IRC sempre a descer, a descer…, durante a crise), todos têm apresentado argumentos e mais argumentos (amiúde contraditórios entre si) sobre a alegada catástrofe que seria um governo de esquerdas, em Portugal, hoje. Com frequência, também, estes novos “amigos” das esquerdas (quer dos socialistas, quer dos bloquistas e dos comunistas) dão também amáveis conselhos ao PS, para que não abdique do centrismo sob pena de enveredar por uma estratégia suicidária a prazo, e até a comunistas e bloquistas, para que não abdiquem das suas identidades, o que necessariamente farão (dizem eles) se entrarem na solução governo de esquerdas, o que os levará ao colapso inevitável (a médio prazo). Com frequência, tais argumentos estão eivados de raciocínios falaciosos, quando não mesmo são caraterizados por uma profunda desonestidade intelectual, e, por isso, decidi escrever sobre alguns dos mais importantes “escolhos imaginários de um governo de esquerdas”. Deixo para próximo artigo os “escolhos reais de um governo de esquerdas”.

A Europa e a NATO

Já aqui referi, em artigo anterior, que já houve, depois de 1989, inúmeros governos da Europa Ocidental que integraram partidos de esquerda radical (mais ou menos eurocéticos, mais ou menos críticos dos blocos político-militares), seja em formato de coligação no sentido restrito (isto é, com ministros dos vários partidos nos governos), seja em formato de governo de minoria alicerçado em acordo(s) parlamentar(es) (como o que está agora a ser proposto em Portugal). Foi assim no Chipre, na Dinamarca, na Finlândia, em França, em Espanha, na Grécia, na Irlanda, na Islândia, na Itália, na Noruega e na Suécia. E não consta que estes países tenham saído quer da Europa, quer da NATO, sendo que uma das razões para tal é que, apesar de também nesses países os partidos de esquerda radical serem críticos (em maior ou menor grau) da construção europeia e da NATO, terem aceite secundarizar uma boa parte destas suas posições críticas em prol de um programa multipartidário comum (tal como estão a fazer BE e PCP/PEV) onde predominam os socialistas (como partido bastante mais votado dos três). Este escolho é pois uma perfeita falácia, roçando amiúde a desonestidade intelectual.

Mas eu iria mais longe para defender que uma boa dose de euroceticismo no governo português será mesmo essencial para nos ajudar a construir uma outra Europa, efetivamente democrática e social. Sobre a não democraticidade da Europa, quatro exemplos. Primeiro, enquanto nos sistemas democráticos o executivo é escolhido pelos cidadãos, no caso dos regimes presidenciais, ou é escolhido indiretamente pelos cidadãos (via Parlamentos), nos regimes parlamentares e semipresidenciais, na UE o poder executivo, ou seja, a Comissão Europeia é uma equipa de tecnocratas não escolhida pelos cidadãos. Segundo, em prol das liberdades dos mercados, há uma série de políticas públicas que estão vedadas aos países (por exemplo, as políticas industriais de ajudas às empresas, comuns na Europa democrática do após guerra), limitando severamente o espaço de competição democrática. Terceiro, pululam na Europa uma série de entidades não eleitas e que poucas contas prestam aos eleitos (a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu, etc.), como enormes poderes e que limitam severamente a ação das entidades democraticamente eleitas. Quarto, de há anos a esta parte o poder relativo dos pequenos Estados não têm cessado de diminuir face ao poder dos grandes Estados.

Sobre a enorme tibieza da Europa Social basta pensar no seguinte. Numa UE onde a liberdade dos movimentos de capitais foi eleita a princípio sacrossanto, e onde não só as transferências solidárias entre Estados têm vindo a diminuir (desde 2004: mais países, menos orçamento comunitário), pontua ainda a ausência de qualquer uniformização fiscal e social. Ou seja, a “Europa realmente existente” transformou-se assim num “Cavalo de Troia da globalização” (em vez de ser um instrumento de regulação do capitalismo, como propunha a utopia social-democrata): ou os Estados fornecem as condições ótimas para o capital (baixos salários, impostos baixos para as empresas, baixa proteção social, etc.) ou os capitais movem-se para os “paraísos fiscais” (Reino Unido, Irlanda, Luxemburgo, Holanda, etc.). É a célebre “corrida para o fundo” promovida pelas regras europeias. Ou os socialistas começam seriamente a combater este status quo, para o que a sua penetração pela esquerda radical via alianças governativas é absolutamente crucial, ou correm o risco de se tornarem politicamente irrelevantes, ou seja, meros apêndices do PPE ou dos PàFs deste mundo…

A estratégia alegadamente suicidária dos socialistas com o abandono do centro

Portugal sempre teve um dos partidos socialistas mais centristas do quadro europeu, e o extraordinário é o desvio centrista do PS. Por exemplo, segundo dados do European Election Study de 2009, o PS tinha uma posição média na escala esquerda-direita (de 1, esquerda, a 10, direita) de 5,12, ou seja, praticamente no centro do centro: 5,5 (ver March, Luke, e Freire, André (2012), A Esquerda Radical em Portugal e na Europa: Marxismo, Mainstream ou Marginalidade?, Porto, Quid Novi, p. 228, Tabela 2.19). Mais, em 27 sistemas políticos europeus o PS estava entre os partidos mais centristas da família socialista europeia: mais à direita do que o PS só existiam então 3 partidos socialistas em 27, mais concretamente o lituano, o grego e o luxemburguês. Finalmente, outra singularidade: Portugal estava entre os 7 sistemas, em 27, nos quais a distância ideológica entre o centro-esquerda e o centro-direita era mais pequena, em boa medida devido ao excessivo centrismo do PS. As razões para tal são várias, mas entre elas avulta a política de alianças: ao contrário do que se passava e passa no resto da Europa, quando não tinha maioria absoluta o PS aliava-se invariavelmente à direita. É isto que está prestes a mudar, com o eventual governo de esquerdas, e representa um passo de convergência do PS com os socialistas europeus, não o contrário.

Mais, o passo do PS português é um sinal crucial para o centro-esquerda europeu na atual conjuntura, sobretudo se puder contaminar outros países, nomeadamente a Espanha, com eleições gerais em Dezembro deste ano. O socialismo europeu está, em inúmeros países europeus e outros sistemas conexos, à beira da quase completa irrelevância, designadamente na Grécia, França, Hungria, Polónia e Israel. Mas tal não deriva, ao contrário do que dizem Paulo Rangel ou Francisco Assis, de alianças com a esquerda radical. Não, pelo contrário, tal deriva de alianças mais ou menos permanentes (Israel), ou recentes mas profundas (Grécia), com a direita, ou pelo menos da capitulação perante o euro-liberalismo (Hungria, Polónia, França). É quando os socialistas se tornam indistinguíveis da direita que se tornam irrelevantes… e abrem espaço para que a oposição ao euro-liberalismo seja monopolizado pela direita radical e/ou pela direita nacionalista e eurocética (Hungria, Polónia, França). Veja-se o caso da Polónia: é preciso a direita nacionalista e eurocética chegar ao poder para se imporem impostos significativamente mais altos sobre a banca e a grande distribuição, algo que os socialistas liberalizados geralmente não ousam… Por tudo isso, a estratégia atual do PS é o caminho certo para o socialismo europeu se quer deixar de ser um apêndice do PPE.    

Claro que o centro é importante, mas no panorama europeu é muito comum uma alternância de blocos (esquerda vs. direita) e as pontes ao centro fazem-se usualmente através de partidos do centro, não dos socialistas. Tal seria uma aposta inteligente e consequente para Francisco Assis e todos os socialistas de direita, ou seja, formarem um partido do centro, do tipo “liberais de esquerda”, ou “partido democrata”, em vez de andarem a apostar, à outrance, nas divisões internas do PS. Veremos se têm a coragem para serem politicamente consequentes…

Politólogo, Professor do ISCTE-IUL

andre.freire@meo.pt

 

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