Do nada nasce Kap

“Não me identifico com caminho que o panorama nacional de hip hop está a levar. Acho o meu rap diferente, menos sucinto e directo. Sinceramente, nunca me preocupei com essa identificação, até agora"

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Estamos no Jardim da Rua das Flores, um cantinho verde escondido da Rechousa. A vista de uma clareira, para as terriolas de Gaia interior, é estranhamente inabalável. No meio dos pinheiros e da mata jovem não cortada pelo desleixo, perdura o sossego e o silêncio. Kap acaba de enrolar um cigarro no pequeno coreto onde nos sentamos e diz: “Este é o meu retiro espiritual”. Percebe-se: ao contrário do que alguns poderão pensar, não se passa nada aqui. De facto, ao contrário do que alguns poderão jurar, estes pedaços de gente perdidos podem ser o berço dos projectos capazes de acrescentar alguma coisa ao panorama musical português. Se por um lado Rechousa está amorfa num estigma social, por outro esta é a terra da lírica cerebral de Kap.

Pronúncia nortenha, ímpeto português

O rapper lançou o seu primeiro EP, “Sobrenada”, em 2012. Em 2013, “Difícil de ser encontrado”. Apesar da suas durações prolongadas, ele não os considera LP’s. “Não estão suficientemente maduros”, conta-nos. Ainda assim, dão as primeiras mostras do gosto lusitano dos seus instrumentais e da dúvida que assombra permanentemente as suas letras. Kap é um liricista que se questiona, que não se conforma com as regras lançadas pelo seu meio, procurando ser uma melhor pessoa ao mesmo tempo que um melhor rapper.

Antes de 2014 ainda lançou “Íman”, o mais próximo que tem de um “hit”. Em cima de um beat acutilante, fala-nos de uma relação fulgurosa que embateu com os caminhos da droga, de uma ex-namorada que já não reconhece, com uma postura distante e analítica. “Éramos 0+0 com relações sem sucesso; Dois ex-conhecidos ambos de fácil acesso; Quatro anos de diferença que nunca foram excesso; Eu já nem peço um regresso, simplesmente eu já nem peço” abre a primeira estrofe. Ainda que a ache imatura, ele oferece-nos uma síntese da sua música: prática, inconformada, reminescente em mágoa.

?Desde os instantes frívolos em que Kap começou com o projecto, já passaram mais de quatro anos. O rapper cresceu pelo caminho. Artisticamente, ainda mais. Tem agora uma noção segura do que quer.

O músico feito em álbum

“Do Nada Nasce Tudo” partiu de um desejo pueril. Segundo o próprio, de “uma necessidade" de se superar a si "e aos outros para poder descansar”. Acabou por se revelar uma epopeia, uma ânsia maior do que o próprio poeta e, em termos práticos, o seu maior palco. “A Chegada”, música que abre o registo, explicita essa espera que se consumou em prudência: a letra, o instrumental, o refrão, o flow, todos os elementos musicais são os mais certeiros do seu portfólio. “O maior erro de todo processo foi o de ter definido uma deadline numa fase muito embrionária, e isso tornou-se matador até um certo ponto. Mas também dá ao álbum aquele sabor a whisky velho, a angústia, fruto da minha própria frus- tração” diz-nos o músico. Desde o início que o álbum destila esse fardo pesado de dois anos. Cientes disso, estamos perante uma peça para se beber devagar.

Este LP é um momento de afirmação, distante da necessidade de sobrevivência dos registos anteriores. Exprime gostos que nasceram naturalmente com o crescimento do rapper, e soa mais autêntico por isso. É o caso de “As Costas”. Super concisa, o beat é uma declaração de amor à bossa (como é o caso de muitos dos samples aqui presentes), a letra de uma rima poeticamente colorida. Enquanto abana o pescoço, metaforiza uma dor de costas para a dor de pensar, cinzas de uma brasa inteligente. Cisma incerteza, como Kap, mas é certa enquanto uma das melhores músicas de hip hop português de 2015.

“Menos um a mais” é o momento requintado de “Do Nada Nasce Tudo”, da lírica mais sensivelmente refinada. Um piano abandonado acompanha o rapper, enquanto ele se abandona. “Já não és o que eras antes e isso vê-se; Tudo o que em ti era calma ago- ra virou silêncio; Estás menos tempo na sala, na vida tudo te cala, E é a forma como não falas que me deixa atento”. Em contrapartida, “O Ninho pt.1” escoa uma relação sem final-feliz. É emocionalmente cru, mas subtilizado pela declamação. Um disparo atenuado pelo tempo, mais ainda sangrando, feito música. O resultado é surpreendente.

O avô de Kap, Gervásio Poças, é a única voz que acompanha a solidão do intérprete, funcionando com a entidade moral do álbum. De facto, sem nos apercebermos, toda a expressão criativa do músico neste registo remete para essa solidão, para a instância desgastante e profusamente demorada de concepção onde sozinho, como que em retiro, o rapper escreveu, produziu, matutou e masterizou o LP. Este é um dos motivos que faz de “Do Nada Nasce Tudo” especial: é uma manifestação humana ao mesmo tempo que um objecto artístico. Espelha um processo com o qual todos nós nos podemos identificar (não enquanto potenciais músicos, mas como seres dotados de resiliência) e as adversidades que surgem naturalmente no caminho. As dúvidas, o auto-questionamento vicioso, os momentos de fraqueza trespassam da flor da pele do artista para a flor da pele destas 18 músicas.

Com o final de “Acappela”, Kap é um criador maduro e consciente, ao mesmo tempo que uma pessoa como todos nós. Não há nenhuma imagem grandiosa, nenhuma ficção oriunda do nome e da influência passada. Ele nunca se esqueceu de ser humano.

Daqui para a frente

“Não me identifico com caminho que o panorama nacional de hip hop está a levar. Acho o meu rap diferente, menos sucinto e directo. Sinceramente, nunca me preocupei com essa identificação, até agora. Gostava de chamar mais pessoas e um público diferente com este álbum”. Na penúltima faixa, “inacabad", confidencia-nos: “Vejo o público de costas, raramente de frente; E a questão já nem é se eu o mereço. Porque as provas eu já dei, mas ainda te quero provar; Que eu ‘tou lá mesmo quando não apareço”. Vocês ouviram-no.

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