Directores do Fantasporto receberam verbas não declaradas e receitas de bilheteira

Pagamento de 87 mil euros ao Fisco permitiu o arquivamento do processo-crime, mas a investigação revelou que o Mário Dorminsky e Beatriz Pacheco Pereira receberam 71 mil euros não declarados, além de terem feito viagens particulares pagas pelo festival.

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Mário Dorminsky PÚBLICO/Arquivo
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Beatriz Pacheco Pereira Paulo Ricca
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Fernando Veludo/NFactos

A investigação desencadeada pelo Ministério Público (MP), após uma denúncia anónima, à Cooperativa Cinema Novo acabou recentemente arquivada, mas permitiu revelar a verdadeira realidade da situação financeira com vários desvios nas contas do Fantasporto que aquela entidade organiza. Entre 2010 e 2012, o festival que então recebeu mais de meio milhão em subsídios comunitários e estatais, através do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) e do Instituto de Turismo de Portugal, registou inúmeras irregularidades fiscais e o uso desapropriado de verbas, segundo o processo ao qual o PÚBLICO teve acesso.

Para o Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) do Porto não restaram dúvidas de que se registou o crime de fraude fiscal, mas Mário Dorminksy e a sua mulher, Beatriz Pacheco Pereira, directores do festival e arguidos, pagaram 87 mil euros do montante em dívida, e o processo foi arquivado. O Regime Geral das Infracções Tributárias prevê essa possibilidade, admitindo a dispensa de pena e o arquivamento do processo.

Daquele montante global, mais de 33 mil euros correspondem à regularização do imposto de IRS do casal, que auferia rendimentos da cooperativa, e mais de 57 mil foram pagos pela Cinema Novo face ao IVA em falta. No interrogatório, os arguidos não prestaram declarações e no processo não conseguiram explicar as irregularidades detectadas pelos inspectores da Autoridade Tributária, nomeadamente verbas que receberam ou usaram e não foram declaradas às Finanças. Aproveitaram então a oportunidade para as assumir como rendimento e entregar declarações de IRS que corrigiram as anteriores.

Nesse período, Beatriz Pacheco Pereira recebeu mais de 53 mil euros da cooperativa que não foram então declarados. O mesmo sucedeu com funcionários da entidade, mas o despacho final de arquivamento no processo não menciona o montante em causa. O MP concluiu que, em relação à directora, as verbas seriam uma espécie de compensação pelo uso de viatura própria ao serviço do festival. Por outro lado, no processo também investigado pela Polícia Judiciária do Porto, foi detectada a transferência de quase 2800 euros de verbas da bilheteira, em cartões de participante, para uma conta de Beatriz Pacheco Pereira em 2011 e 2012. A directora corrigiu a situação em 2013, antes do “início da acção inspectiva” das Finanças, emitindo um cheque à cooperativa.

Já quanto a Dorminsky, o MP conclui que terá usado o cartão de crédito da Cinema Novo nesses três anos para diversos gastos, no valor global de 18 mil euros, que terão sido pessoais, já que “não tinham relação com o objecto social da cooperativa”. Em causa, diz o MP, estarão várias viagens para as quais não há uma justificação que permita atestar que foram profissionais. Mais uma vez a solução foi a mesma: Dorminsky assumiu aquelas verbas como rendimentos e corrigiu as declarações de IRS já no âmbito da investigação e enquanto arguido. No total, entre os gastos no cartão de crédito e transferências para Beatriz Pacheco Pereira, o casal recebeu 71 mil euros.

Também em relação às finanças da cooperativa, que entre 1997 e 2013 recebeu meio milhão de euros em subsídios da Câmara do Porto, os investigadores ficaram surpreendidos com algumas conclusões. Em 2010, nem todos os registos provenientes da venda de bilhetes foram incluídos na contabilidade, o que originou discrepâncias no IVA. Como é que a investigação o descobriu? A venda dos bilhetes era registada no sistema do Teatro Rivoli, no Porto, e também controlado pelo ICA. Nesse ano, o MP diz que foi registado na contabilidade "um montante distorcido" de 46 mil euros provenientes de vendas, quando "o valor efectivo" foi de 7900 euros.

Ao PÚBLICO, Dorminsky começou por confirmar alguns valores em causa, nomeadamente quanto à bilheteira, mas depois remeteu explicações para a mulher. “Pagámos os 30 e tal mil euros de IRS. A cooperativa só pagou entre 5 a 6 mil euros. Não é verdade que tenha pago mais. Isto foi um ataque que nos fizeram. Estamos a falar de erros de contabilidade que desconhecíamos. Foi arquivado o processo, e não cometemos nenhum crime”, disse Beatriz Pacheco Pereira, desmentindo números no processo, salientando que o casal vai justificar e reclamar os valores de imposto que preferiu pagar à AT para conseguir arquivar o processo e garantindo que o “Fantasporto vai continuar”.

O advogado do casal, Rui Barroso Soares, não esteve disponível para prestar declarações.

Em 2013, o festival anunciou o despedimento colectivo de seis trabalhadores face a dificuldades financeiras, e Dorminsky admitiu estar perante o “pré-fim” do Fantasporto.

Segundo o inquérito, também não foram registadas na contabilidade todas as verbas “referentes a eventos do Fantasporto de 2010, 2011 e 2012 que resultou em incorrecções para efeitos de IVA a entregar nos cofres do Estado”. Também isto foi regularizado no decorrer já da investigação em 2013.

Num segundo inquérito-crime, que também foi arquivado, estava em causa uma alegada burla tributária à Segurança Social. Uma denúncia anónima dava conta de que o filho do casal Dorminsky, que trabalhou na cooperativa, fora despedido para usufruir do subsídio de desemprego, mas continuaria a ser pago pela Cinema Novo. Também uma cunhada teria sido despedida para obter indemnização e subsídio de desemprego, tendo sido depois readmitida. Porém, a investigação não encontrou indícios suficientes para acusar os arguidos.

Um terceiro inquérito-crime, em que Mário Dorminsky e Beatriz Pacheco Pereira são arguidos no contexto do Fantasporto, continua em investigação e em segredo de justiça.

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