Penélope na rua

1. Um velho amigo carioca pára em Lisboa, jantamos. Ele fala-me de um lugar remoto no Nordeste do Brasil aonde só se chega depois de apanhar um avião, um barco, um ônibus, um tractor e caminhar. Esse lugar é uma espécie de favela, barracos em cima da praia, crianças largadas, homens bebendo e batendo nas mulheres. O meu amigo repete isso mais do que uma vez, como uma espécie de resumo do lugar, homens bebendo e batendo nas mulheres. No tamanho do Brasil cabem muitos lugares remotos assim, estive em alguns, na Amazónia, no interior do interior, como aquela comunidade junto a Mariana, em Minas Gerais, que agora acaba de ser engolida pela lama, depois do rompimento de uma barragem, num complexo de mineração. Passei meses no interior de Minas, vi como as mulheres lá têm seis, oito, dez filhos, trabalham de sol a sol fora de casa, e depois vão para casa lavar a roupa dos seis, oito, dez, e cozinhar para eles e para o marido. E depois há essas histórias que não se contam assim à primeira, das mulheres que morrem em abortos clandestinos, das mulheres que engravidam sem querer, de como as mulheres são abusadas, espancadas, estupradas e assassinadas no Brasil, e em silêncio. Vá dizer a uma mulher num lugar remoto que ela vai ser protegida pela lei, que ela tem direitos, que não é assim. Nem num lugar remoto nem no centro de Brasília onde um político como Eduardo Cunha começa a mudar a lei para tornar a vida das mulheres brasileiras ainda um pouco pior. Enquanto isso, quem está sentado no Palácio do Planalto é uma mulher. Chama-se Dilma Rousseff.

2. Os números pioram, ano a ano. Nas últimas três décadas, o número de mulheres assassinadas triplicou no Brasil. Em 2013 foram contabilizadas 4762 mulheres, é a quinta taxa mais alta do mundo. Portanto, até o dia de hoje terminar, 13 brasileiras serão assassinadas. E, entre eu escrever esta crónica e ela sair, três brasileiras terão morrido na sequência de um aborto clandestino. É a média estimada pela Organização Mundial de Saúde, uma mulher morta a cada dois dias, hoje é terça, a crónica sai domingo. Isto de um total que ronda um milhão de abortos clandestinos por ano. Dividindo por dias do ano, dá mais de 2700. Quando um país tem mais de 2700 mulheres por dia a correr risco de vida num aborto clandestino, o mínimo será concluir que é um problema de saúde pública.

3. Vale a pena ter estes números presentes ao falar da tal proposta de lei de Eduardo Cunha, actualmente, vá saber como, presidente da Câmara de Deputados, apesar de todas as manifestações de homofobia e misoginia, da não separação entre igreja e Estado, e, sobretudo, de estar a ser acusado de receber recursos desviados da Petrobras, nas investigações da Operação Lava Jato, incluindo cinco milhões em contas não declaradas na Suíça. O já famoso Projecto de Lei 5069 concebido por Cunha prevê que a mulher estuprada tenha de ir a uma delegacia fazer denúncia de estupro e ser sujeita a exame de corpo de delito, antes de ir ao hospital. Ou seja, uma mulher que acaba de passar por essa violência, e corre o risco de ter engravidado, e de ter sido infectada com HIV, só pode ser assistida se for à polícia primeiro. Isto, quando toda a gente sabe que muitas mulheres receiam ir à polícia por medo do agressor, e portanto, de acordo com o espírito desta lei, não serão tratadas, nem terão acesso a travar uma eventual gravidez no serviço público de saúde. Que pretende Eduardo Cunha com isto? Complicar o acesso legal ao aborto, numa das únicas situações em que ele é autorizado no Brasil, o estupro. E não está sozinho, os deputados da Comissão de Constituição e Justiça já aprovaram a proposta, primeira etapa para ela fazer caminho. O texto também passa a considerar crime contra a vida o anúncio de substância ou objecto destinado à interrupção da gravidez e a orientação de gestantes para o procedimento, com pena de até dez anos de reclusão. É a antecâmara de proibir a pílula do dia seguinte, teme-se. E há outras propostas em cima da mesa: incluir o aborto nos crimes hediondos, penas para os médicos que façam abortos fora da lei de seis a 20 anos de prisão.

4. É contra isto que milhares de mulheres estão a sair à rua no Brasil. Do Rio alastrou a São Paulo, Belo Horizonte, por aí vai. Literalmente à rua, e aproveitando as redes sociais como praça, convocatória, veículo de campanha. Se em Brasília uma mulher ser Presidente é indiferente, e no Parlamento Eduardo Cunha dá armas legais ao Brasil mais reaccionário, resta não ficar quieto, pelo menos para quem pode, tem acesso, flexibilidade de movimento. E parece uma comporta que se abriu, porque no meio da luta contra as propostas de lei de Eduardo Cunha veio a enxurrada de mulheres contando como foram assediadas desde meninas, depois de uma menina de 12 anos num programa de televisão ter recebido assédios pedófilos. O colectivo Think Olga criou a hashtag #primeiroassedio. Vai para cem mil tuítes, uma libertação colectiva de fantasmas, traumas, abusos. Tão inédito como ver homens brasileiros a fazer mea culpa publicamente por assédios ao longo da vida: está a acontecer.

Foto
Pilar Olivares/Reuters

5. Quando fui morar para o Brasil, antes mesmo de ter uma percepção do poço sem fundo que é a violência contra as mulheres, senti esse embate do que era o lugar, o papel, o comportamento da mulher. O machismo manifestava-se de mil formas subtis ou não tão subtis todos os dias. A mulher tinha de ter uma bunda no sítio, e se essa bunda estivesse num fio dental, era bonito de ver, mas nada de topless. Mulher de peito de fora podia ir presa. Mulher que não cuidasse do corpo, não fizesse unha, não se depilasse era uma desleixada, mulher de óculos, não, pelo menos não fora de casa, na balada da noite, e por aí fora. As mulheres esmifravam-se para caber em tudo o que se esperava delas, e ainda assim não arranjavam namorado porque os homens só queriam transar, toda uma sociologia. Depois, o buraco ia descendo, vinha a coisa toda, assédio, violência, abuso. Mulheres que nunca tinham namorado mulheres passavam a namorar mulheres, e isso não era apenas um sair do armário, era também uma segurança, um cansaço. Claro, estou a falar de ambientes urbanos, não dos confins do Nordeste ou do interior de Minas.

6.Isso foi mudando, subtilmente. A Marcha das Vadias, contestando a ideia de que mulher abusada é porque faz por isso, ficou maior. Roupas, corpos, pêlos começaram a tornar-se mais políticos. Até os óculos se multiplicaram. Nas manifestações de 2013, certamente as mulheres foram parte da rua e das causas. E no pós-2013, em que tão incerta é a discussão sobre se sobraram sujeitos políticos, e quais, as mulheres tornaram-se protagonistas. Se hoje há mais reaccionários do que nunca nas ruas do Brasil, e o PT bem pode fazer disso um mea culpa, Dilma Rousseff à cabeça, também há mais mulheres contra isso do que nunca. A repolitização do Brasil como sociedade civil passa muito por elas.

7. Comecei esta crónica com um carioca, aliás daqueles a quem não me lembro de ouvir uma palavra machista, nem palavra, nem acto, nem gesto, e convivemos de muito perto. Termino com uma portuguesa que como eu foi de Lisboa para o Brasil, mas ainda lá está, entretanto casou com uma mulher, com quem entretanto teve uma filha. Já escrevi uma vez sobre ela aqui, a Rita Natálio, artista, interventista, ensaísta e ainda escreve poemas. Esta semana veio a Lisboa lançar Artesanato, pequeno livro de 32 páginas (porque 32 é o nome dessa colecção da Não Edições). E veio com a sua mulher brasileira, Joana Levi, e a filha de ambas, Penélope. O quadro mais antigo, Joana amamentando Penélope, e Rita a falar de tecnoxamãs, de hyperlinks, da língua se cruzar com todas essas outras possibilidades, isto, num lançamento no centro de Lisboa, numa rua chamada Poço dos Negros, por causa da escravatura. Além do lançamento de Artesanato, resumiu Rita, era o lançamento de Penélope, ali, tranquila, no movimento. A dedicatória do livro diz: Para Joana que gosta de dizer te-amo-te / para Penélope que aprendeu a dizer uh-uh-uh / e para o tempo em que fazendo nada fiz isto. O artesanato em 2015, mas com muito mais fios. A diferença é que a história agora é dela.

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