O medo e o resto

Pierre Hassner diz que “estamos entre dois medos: temos razão de ter medo do terrorismo, mas também de ter medo das medidas que se tomam contra o terrorismo”

Reserve as sextas-feiras para ler a newsletter de Jorge Almeida Fernandes sobre o mundo que não compreendemos.

Comecemos por falar daquilo com que poderíamos concluir: o medo. A Europa percebeu que se torna mais vulnerável à medida que se intensifica a guerra de múltiplas frentes na Síria. A carnificina de Paris não é apenas uma declaração de guerra do Estado Islâmico (EI) à França — visa também a Europa, em plena crise dos refugiados. A sua mais sinistra ameaça resume-se num dito de Bin Laden: “Nós temos jovens que amam a morte mais do que vós amais a vida.”

O terror do EI tem um desígnio estratégico com muitos vectores: demonstrar a força dos jihadistas e galvanizar os adeptos, provocar a partir do medo recíprocas reacções de ódio para romper as críticas pontes entre a Europa e as suas comunidades islâmicas e, enfim, fazer inflectir a política dos Estados europeus que intervêm na Síria, no Iraque ou na África, e também dissuadir os outros de o perseguirem.

O medo é uma das mais poderosas paixões. Dele escreveu Georges Bernanos a partir da sua experiência na Guerra Civil de Espanha: “O medo, o medo verdadeiro, é um delírio furioso. De todas as loucuras de que somos capazes, o medo é a mais cruel. Nada iguala o seu vigor, nada pode suster o seu choque. A cólera, que se lhe assemelha, não passa de um sentimento passageiro, uma brusca dissipação das forças da alma. Para mais é cega. O medo, ao contrário, desde que se ultrapasse a primeira angústia, forma com o ódio um dos mais estáveis compostos psicológicos que há.”

O veterano politólogo francês Pierre Hassner, para quem a “desordem” substituiu a “ordem internacional”, fala de medos contraditórios. “Estamos entre dois medos: temos razão de ter medo do terrorismo, mas também de ter medo das medidas que se tomam contra o terrorismo. Os meios de protecção que temos tornaram-se eles próprios ameaçadores, (...) seja pelas ameaças ligadas às exigências da defesa ou pelas ameaças às liberdades individuais que constituem as medidas de segurança adoptadas pelos governos.” Previne contra o modelo da reacção de George W. Bush e dos neoconservadores após o 11 de Setembro.

Escrevia ontem o analista francês François Heisbourg: “É a partir de agora que se joga a derrota necessária — ou a possível vitória dos jihadistas. E em primeiro lugar no plano interno. Será forte a tentação de preparar uma legislação de excepção, rápida e mal feita: um Patriot Act à francesa.”

A derrota do terrorismo será determinada pela reacção da sociedade. E também da escala e do timing da próxima atrocidade, previne a The Economist. Se os cidadãos se convencerem de que os serviços de segurança se tornaram incapazes de lhes assegurar um mínimo de protecção, muito pode mudar, suscitando o agravamento da tensão com as comunidades muçulmanas. “O Estado Islâmico procura desencadear a guerra civil em França”, escrevia ontem no Monde Gilles Kepel, um especialista do islão.

Testes: FN e refugiados
O problema não é retórico. A França, com a maior comunidade muçulmana na Europa, cinco milhões de pessoas, é o país mais exposto ao terrorismo da “segunda geração”. A actual mobilização jihadista “é um fenómeno sem precedentes e de alcance global pois tem uma das suas bases fundamentais na Europa”, escreve o especialista espanhol Fernando Reinares. “Os países mais afectados são aqueles em que predominam os muçulmanos de segunda geração”, como a França, a Grã-Bretanha ou a Alemanha.

Tal mobilização decorre de uma “crise generalizada de identidade dos jovens muçulmanos”. Muitos acabam por sentir que o islão é a sua única nação. O multiculturalismo inglês e a política de assimilação francesa griparam. “Expostos à propaganda jihadista na Internet e nas redes sociais”, radicalizam-se. “Contribuem para a insurreição jihadista na Síria e no Iraque. E [na Europa] elevam a ameaça do terrorismo endógeno.”

A 6 e 13 de Dezembro há eleições regionais em França. Serão um termómetro. Já não apenas do populismo da Frente Nacional de Marine Le Pen mas também do efeito das vagas de refugiados — que, diga-se de passagem, a França praticamente não acolheu. E, agora, dos ataques em Paris. Yves Camus e Nicolas Lebourg, estudiosos da extrema-direita, lembram num livro recente (Les droites extrêmes en Europe) que a última grande vaga da extrema-direita se alimentou do 11 de Setembro e do temor provocado pelo islão.

O tom está dado: “Enquanto Hollande e Valls combatiam a FN, os assassinos sanguinários preparavam os seus atentados! Vergonha, vergonha para os dois” — escreve num tweet Nicolas Bay, secretário-geral da FN.

O segundo teste foi antecipado. Imediatamente antes dos atentados, Angela Merkel, isolada na UE e no seu governo, foi forçada a uma drástica revisão da sua política de acolhimento de refugiados, aplicando de novo as regras ditas de Dublin e obrigando os refugiados a apresentar o pedido de asilo no país de entrada na UE. Berlim decidiu endurecer o controlo nas fronteiras. Antes da Alemanha foi a generosa Suécia a fechar as portas.

Os refugiados vão ser as “vítimas colaterais” de Paris. Mais muros se vão erguer. Às portas do Inverno, eles vão permanecer concentrados em condições provisórias e degradantes. A Europa de Schengen está a ser corroída. A “hora humanitária” está a esgotar-se.

Síria
A montante de tudo isto — terror e refugiados — está a Síria, país que já não existe. A “antiga” Síria está internamente fracturada e dividida em áreas de influência por potências externas. É um emaranhado de conflitos: guerra civil entre Assad e jihadistas, guerra regional entre árabes xiitas e sunitas, turcos e curdos, agora também palco da rivalidade russo-americana. Como combater eficazmente o EI? Esquecer Assad ou combater ao mesmo tempo o EI e Assad? As chancelarias hesitam.

Os ocidentais, e sobretudo os media, acumularam erros de avaliação desde 2011, enquanto os Estados árabes não resistiam a incendiar a região. “Se a Síria explodir, fará explodir a região”, profetizou em Abril de 2011 o analista turco Mehmet Ali Birand. É uma tragédia que já fez mais de 250 mil mortos e milhões de deslocados e refugiados.

A nova dimensão do conflito sírio é a “exportação” da guerra para a Europa. Primeiro, através de centenas de milhares de refugiados. Depois, pela aparente viragem estratégica do EI, que estará a tentar alargar a guerra à Europa. Foi, há duas semanas, o avião russo aparentemente abatido no Sinai por uma filial do EI: 224 mortos. Agora, a carnificina de Paris.

A França está em guerra com o EI. É previsível uma intensificação das acções militares. Mas, sobretudo, deverá resistir ao “delírio furioso” do medo, que significaria o triunfo do terror.

Sugerir correcção
Ler 7 comentários