A pobreza “não pode justificar” a retirada de uma criança à família

Marta Santos Pais, representante especial das Nações Unidas em matéria de Violência contra Crianças, diz que é preciso ouvir mais os jovens que vivem experiências de acolhimento: “A maior lacuna, dizem eles, é a falta de afecto e de amor.”

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Guilherme Marques

Em alguns países “há a tentação de decidir retirar a criança para um ambiente alternativo porque a família é pobre e não tem recursos económicos”, diz Marta Santos Pais que é desde 2009 representante especial das Nações Unidas em matéria de Violência contra Crianças. A ex-directora do Centro de Investigação Innocenti da Unicef defende que a prioridade dos Estados deve ser apoiar as famílias mais vulneráveis. E é esse o conselho que deixa também a Portugal.

Mas quando é mesmo preciso afastar as crianças, a aposta deve ser a integração em famílias de acolhimento, devidamente acompanhadas, e não em instituições. O modelo português, que se baseia sobretudo em ter as crianças em lares e centros de acolhimento, “não é o ideal”, nota Marta Santos Pais que esteve nesta quinta-feira em Lisboa para participar na conferência internacional sobre Acolhimento de Jovens em Instituição, promovida pela Fundação Calouste Gulbenkian, onde explicou que o risco de uma criança ser alvo de violência numa instituição de acolhimento é seis vezes mais elevado do que para as crianças colocadas no seio de uma família de acolhimento.

Segundo os números que apresentou, todos os anos, só no continente europeu, cerca de 18 milhões de crianças são vítimas de abuso sexual, 44 milhões sofrem maus tratos físicos e 55 milhões sofrem violência psicológica...
Temos pouca informação sobre a incidência da violência na criança, na Europa e no mundo em geral. Os estudos das Nações Unidas e de académicos dão apenas uma indicação limitada da realidade. Por exemplo, em relação a esses dados para a Europa, a Organização Mundial da Saúde considera que provavelmente correspondem apenas a cerca de 10% das situações.

Mas disse também que o risco de uma criança ser alvo de violência numa instituição de acolhimento é seis vezes mais elevado do que para as crianças colocadas no seio de uma família de acolhimento. Em Portugal há mais de 8000 crianças institucionalizadas, que foram retiradas às famílias biológicas por se considerar que estavam em perigo. A maioria dessas crianças estão em lares e centros de acolhimento. As chamadas famílias de acolhimento constituem uma resposta muito residual. Já em países como a Irlanda ou o Reino Unido é o contrário: as crianças vão essencialmente para famílias de acolhimento e não para instituições. É este o modelo que deve ser seguido?
O modelo a seguir é garantir que o Estado investe na protecção da família biológica. Essa deve ser uma prioridade nacional, para impedir que seja necessário considerar qualquer medida que implique a colocação da criança fora do seu ambiente familiar natural.

Há inúmeras razões que levam a que seja preciso retirar as crianças, situações de alcoolismo, de violência doméstica, por exemplo. Mas em alguns países há a tentação de decidir retirar a criança para um ambiente alternativo porque a família é pobre e não tem recursos económicos para satisfazer necessidades básicas da criança, como a sua alimentação e saúde. O que queremos promover é esta reflexão: isso não é necessário se o Estado apoiar as famílias com maiores necessidades, que se encontram em situações de maior vulnerabilidade. Porque os laços afectivos e o ambiente de apoio e afecto que pode ser garantido por uma família biológica é naturalmente muito mais forte do que numa família alternativa.

Pobreza e miséria não justificam o afastamento das crianças do seu ambiente familiar?
Não pode justificar. Agora, voltando à sua pergunta inicial: quando tem mesmo de se afastar a criança da sua família biológica, a solução deve ser encontrar um ambiente familiar alternativo. Uma família que acolhe, com o apoio do Estado e com a avaliação dos serviços do Estado. Esse ambiente é sempre mais rico do que o de uma da instituição. Uma instituição deve ser a última solução.

O modelo português é, sobretudo, o de colocar em instituições. Devemos encontrar outro?
Esse não é o modelo ideal. A colocação das crianças numa instituição dilui a relação personalizada, que é fundamental para garantir o estímulo, o desenvolvimento mental da criança. Colocar numa instituição uma criança até aos 3 anos vai comprometer o seu desenvolvimento, a sua capacidade relacional, que nasce com o contacto outras pessoas, com o ter uma relação de confiança com adultos. Isto tem um custo económico e social elevado para os países. Não é bom para a criança. E não é bom para a família biológica que se vê privada da criança que, normalmente, é querida.

E como devem ser as famílias de acolhimento?
Devem ser apoiadas pelo Estado, financeiramente, com orientação, com avaliação, para que as crianças não corram riscos de maus tratos, de negligência, de discriminação. Para que não andem de família de acolhimento em família de acolhimento, porque há esse risco. Estive recentemente na Noruega numa reflexão com jovens que passaram por situações de acolhimento que insistiram muito que não sentiam qualquer relação de afecto, e de amor, e de ser querido. E que disseram que ninguém lhes tinha explicado por que é que tinham sido obrigados a sair de um contexto, para outro — estou a falar de jovens que tinham mudado de família de acolhimento, quatro, cinco vezes, até mais. Isto é extraordinariamente traumatizante. Passa a mensagem: “És um problema, és difícil, ninguém consegue dar-te a mão.” Sentem-se colocados como uma peça de mobiliário.

No ano passado 368 crianças e jovens que estavam no sistema de acolhimento português viram ser-lhes decretada pelos tribunais uma medida que lhes permite entrar no sistema de adopção, para poderem ser adoptados. Muitos estavam havia mais de quatro anos em instituições. Estes tempos de espera são também uma forma de violência?
Para os adultos, dois anos, cinco anos, pode parecer algo difícil mas é superável. Para uma criança de 3 anos, 5 anos, 10 anos, um dia, uma semana, um mês são uma eternidade. E quando essa dimensão é acompanhada por um profundo sentimento de incerteza, é ainda mais traumático. Do ponto de vista da criança, sim, é uma forma de violência.

Mas, por outro lado, não podemos deixar de lembrar que é muito importante avaliar até que ponto é que a solução que se preconiza é a melhor para a criança. Há garantias que têm de ser salvaguardadas. Temos de encontrar um equilíbrio entre o tempo mínimo e o tempo que garante os direitos das crianças. E em todos estes processos temos de escutar o querer da criança. Tem de ser bem escutado, com a ajuda de um psicólogo que saiba entender a criança A criança pode exprimir-se através de um desenho, até. Pode exprimir-se através de um silêncio. É muito importante criar o espaço necessário para que a criança possa pensar connosco a melhor solução.

Portanto quando digo que há crianças há 4, 5, 6 anos em instituições em Portugal...
É excessivo, temos de tentar reduzir esses tempos.

Em que países na Europa há mais problemas em instituições de acolhimento?
Todos nos lembramos nos anos 90, quando a Cortina de Ferro desanuviou, das imagens de centenas de crianças do Leste depositas em circunstâncias dramáticas em instituições, com profissionais sem qualquer capacidade. Creio que neste momento não temos isso, dado o debate que se gerou e a promoção de novos princípios e instrumentos jurídicos. Há hoje uma pressão muito grande para que tenhamos um olhar diferente para as condições das instituições e para a forma como as pessoas que aí trabalham o fazem. Mas, surpreendentemente, temos desafios em todos os países. Nos países nórdicos tem sido desenvolvida uma experiência muito promissora que é a de reconhecer que as crianças que passaram pelo sistema de acolhimento têm de ser parte do processo que enforma a formulação das leis, das políticas, os mecanismos de avaliação de qualidade e a formação profissional. Em vez de serem considerados utentes, estes jovens são considerados profissionais, como o são os trabalhadores sociais ou os psicólogos. A Finlândia e a Noruega são dois países onde isto se passa assim.

E são ouvidos com que idades?
Reconhece-se que mesmo a criança muito jovem tem uma avaliação a fazer. E há coisas fantásticas que eles sublinham: a maior lacuna, dizem eles, é a falta de afecto e de amor, o facto de e os profissionais [que trabalham no sistema de acolhimento] terem uma cara de pau, uma cara de pedra, que está ali, até parece que quer ouvir, mas quando eles começam a tentar abrir o coração para contar a sua história são automaticamente catalogados: “Este é um tipo de problema, aquele pertence àquela categoria de família.” Estes jovens são hoje ouvidos pelos membros do Governo, pelos membros do Parlamento, pelos universitários que estudam estas matérias. E isto ajuda a que toda esta temática seja parte do debate público muito frequentemente.

No Sul da Europa ainda não se fala muito destas questões. Acho que todos nós temos de contribuir para ultrapassar esta cortina de silêncio. Não para estigmatizar as crianças, mas para perceber o que levou estas crianças a estarem naquela situação, para perceber o que podemos fazer para prevenir. E também para ultrapassar a falta de diálogo que existe entre profissionais, o psicólogo, o procurador da República, o assistente social...

Como assim?
Temos assistido a situações dramáticas em que determinado serviço de apoio social, por exemplo, identifica uma família como sendo de risco, porque existe um alto nível de violência doméstica, e de dependência do álcool, porque as crianças são testemunhas e vítimas. Há um profissional que faz um relatório, que acaba por ficar mais ou menos na gaveta de alguém e todos os demais serviços não olham para a criança em conjunto...

Também se passa em Portugal?
Acho que se passa em Portugal, apesar da boa vontade dos profissionais. Trabalhamos nas nossas torres de marfim, nas nossas disciplinas, quando uma maior articulação permitiria ser mais eficaz e intervir mais cedo e em diálogo com a criança.

O Parlamento irlandês aprovou esta quinta-feira uma lei que proíbe todos os castigos físicos. Em Portugal também não são permitidos. Mas quando os casos chegam aos tribunais há por vezes decisões díspares. No ano passado, o Tribunal da Relação do Porto absolveu pais que castigaram filho com um cinto. Mudar a lei é só um primeiro passo? E depois?
A Irlanda soma-se agora aos 48 países que já têm legislação desta natureza. É muito importante. Mas claro que a legislação não é mágica. Existe ainda muito arraigada a percepção de que a criança pertence à família, e que cabe a cada família escolher a melhor forma de garantir a disciplina e a educação. A utilização do castigo físico, do puxão de orelhas, da palmada, ou do cinto para bater, é tolerada em todas as sociedades. De acordo com um estudo muito recente da Unicef, a cada ano há mil milhões de crianças entre os 2 e os 14 anos que sofrem maus tratos no seio da família. A nossa preocupação é esta: como é que o Estado pode ajudar a formar a ideia de que podemos educar e disciplinar com medidas de disciplina positiva, de reflexão sobre o que a criança fez mal, de discussão com a criança, para que a criança reconheça o que fez, para seu próprio bem? Se não investirmos no apoio aos pais, numa parentalidade positiva e apoiante da criança, não vamos ultrapassar esta tradição.

Deixe-me sublinhar um ponto: há dois meses foi adoptada a nova Agenda do Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas. Um dos objectivos é justamente a eliminação de todas as formas de violência contra as crianças até 2030. A violência contra as crianças custa cada ano quase 10% do produto global bruto da economia mundial. Estamos a falar de milhares de milhões de euros. Se investirmos na eliminação de todas as formas de violência contra as crianças, em 2030, provavelmente, não vamos ter guerras, porque encontrámos um novo paradigma para solucionar as divergências de opinião, os conflitos e as tensões.

A Europa enfrenta uma crise de refugiados. Como vê a situação das crianças?
Neste momento não há uma posição europeia de garantia dos direitos humanos, de registo das pessoas que chegam, de acompanhamento das crianças que chegam. A imagem da criança surge só quando aparece mais um corpo de alguma que morreu ao tentar chegar, mas nas imagens que passam todos os dias na televisão dos refugiados é como se as crianças se diluíssem, como se fizessem parte do cenário, como se não exigissem um acompanhamento e uma protecção especial. Há um contraste claro entre o tempo que os governos têm tomado para encontrar uma solução e a iniciativa e a profunda solidariedade manifestada pelas populações, incluindo a de Portugal, nesta crise. A crise dos refugiados e dos requerentes de asilo são um teste ao nosso verdadeiro compromisso com os direitos humanos.

Dados sobre acolhimento em Portugal, em 2014

Mais crianças: um total de 8470 crianças e jovens encontravam-se em situação de acolhimento, um aumento de 0,3% face a 2013. Destas, 63,6% estão em lares de infância e juventude, 24,3% em centros de acolhimento temporário e 4,5% em famílias de acolhimento. As restantes encontram-se noutro tipo de instituições, como comunidades terapêuticas.

Principais razões para o acolhimento: falta de supervisão e acompanhamento familiar (60% de situações em que e a criança é deixada só, entregue a si própria ou com irmãos igualmente crianças, por largos períodos de tempo); exposição a modelos parentais desviantes (35% de situações em que o adulto potencia na criança padrões de condutas desviantes ou anti-sociais bem como perturbações do desenvolvimento, embora não de uma forma manifestamente intencional); negligência dos cuidados de educação e saúde (32% e 30%) e ausência temporária de suporte familiar (11,2%); prática de comportamentos desviantes (9,36%) e exposição a mau trato físico (7,36%).

Regressos: 949 crianças e jovens que já tinham estado acolhidas e saído do sistema de acolhimento, acabaram por voltar, sendo que 629 voltaram em anos anteriores a 2014 e 320 em 2014. A maioria das reentradas no sistema ocorreram após a aplicação das medidas “apoio junto dos pais” e “apoio junto de outro familiar”.

Adopção: foi aplicada a 368 crianças (4,3%), a medida de promoção e protecção de confiança à instituição com vista a futura adopção.

Fugas: 76 processos de promoção e protecção foram arquivados por fuga prolongada.

Fonte: Relatório de Caracterização Anual da Situação de Acolhimento das Crianças e Jovens (2014).

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