“Entre deixar os filhos passar fome e tratar dos documentos, vai-se adiando”

Ana Cardoso tem quatro filhos nascidos em Portugal. Nunca saíram do país. "É muito injusto. Que eu, que nasci lá, tenha que viver como imigrante, como estrangeira, é natural, mas os miúdos nasceram cá e nascem sem identidade. É cruel”, desabafa.

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No final do ano, parte do subsídio de Natal vai servir para requerer a nacionalidade de Ivan, de 8 anos Nuno Ferreira Santos

Tem de ser um filho de cada vez. Em quatro filhos nascidos em Portugal apenas conseguiu que, até agora, um seja português. Escolheu como critério a idade, Ruben já tinha 17 anos. A mãe Ana Cardoso, cabo-verdiana de 43 anos a viver em Portugal desde os 10 anos, foi tentando dar a nacionalidade portuguesa aos filhos, à medida das suas possibilidades. “Entre deixar os nossos filhos passar fome e tratar dos documentos, vai-se adiando, adiando."

Mas, admite, pelo caminho ficaram oportunidades perdidas para os filhos e “um sentimento de revolta que às vezes as pessoas não percebem". "Não percebem o que é se passa na cabeça deles", sublinha. Ana nunca viu o filho jogar à bola mas sabe que o sonho dele era ter sido jogador de futebol. Não sabe se podia ter sido ou não, o que sabe é que nos clubes de futebol portugueses onde foi bater à porta lhe pediam cartão de cidadão nacional e ele só tinha para lhes mostrar a cédula pessoal, com a naturalidade que dava conta do seu nascimento no centro de Lisboa, na freguesia de São Jorge de Arroios, e o passaporte cabo-verdiano.

Ela e o marido só tiveram dinheiro para lhe requerer a nacionalidade, custa 200 euros, quando ele já tinha 17 anos. Agora tem 20. Ana fala-nos na sua sala de estar na zona da Amadora a meio da manhã, Ruben ainda está a dormir, “fez o 9.º ano, a custo, agora não tem ocupação”. O filho às vezes culpa-os, diz-lhes que é por causa deles que nunca conseguiu ser jogador, porque não lhe trataram da nacionalidade a tempo. Ela responde-lhe que fez o que pode. “A sobrevivência sobrepôs-se aos documentos.”

Ana Cardoso é empregada de limpeza num hotel de Lisboa, ganha 600 euros, tem quatro filhos, tinha uma quinta filha que morreu há dois anos num acidente de automóvel. Debilitada psicologicamente, foi nessa altura que deixou de conseguir acumular os dois empregos que quase lhe duplicavam o ordenado, saia de casa às 7h00, voltava à meia noite, fazia limpezas em escritórios e casas particulares antes de ir para o hotel; agora entra às 14h00 e sai às 22h00. O marido trabalhou, até agora, nas obras, de forma irregular.

A filha Nicole, de 17 anos, também lhe disse que queria muito fazer um curso de restauração numa determinada escola em Lisboa, por ser a melhor na área, mas a mãe conta que não a aceitaram apenas com o passaporte cabo-verdiano e ela teve de se contentar em fazer o curso profissional na escola onde a aceitaram, para ficar com o 11.º e 12.º anos.

“Desde muito cedo são postos à parte, devia ser automática a nacionalidade.” O pedido da nacionalidade desta filha entrou em Agosto, era a segunda na sua lista de prioridades.

No final do ano, parte do subsídio de Natal vai servir para requerer a nacionalidade de Ivan, de 8 anos. Já a sua filha mais velha, 26 anos, que tem dois filhos pequenos portugueses e que já não vive consigo, nunca conseguiu ter a nacionalidade, conta.

“Eles nunca saíram de Portugal. É muito injusto. Que eu, que nasci lá, tenha que viver como imigrante, como estrangeira, é natural, mas os miúdos nasceram cá e nascem sem identidade. É cruel”, desabafa.  

“Para ver como é duro, um dia fui renovar a minha autorização de residência e a dos meus filhos. Deixei lá 400 euros." Teve de pagar coima por ter deixado o seu documento caducar, “só aí foram 220 euros”. O filho Ruben, que na altura tinha 12 anos, só dizia: “Eu não preciso desse documento e agora vamos passar fome." Ele sabia o que ia acontecer, até chegar o ordenado do mês seguinte a família passou um mês a comer esparguete com ketchup.

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