Um ministro enviado por Deus

Um caprichoso criador resolveu inundar de mistérios a política nacional. Com uma fúria demoníaca para a qual não havia seguro. Ninguém pôs de lado um pé-de--meia para cobrir tanto disparate. As frases diluvianas do beato apocalíptico que tomou conta da Administração Interna trazem água no bico?

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Deus nem sempre é amigo, mas o amigo Relvas pode facilitar as coisas. Foi nos dias a seguir às eleições, quando se percebeu que a esquerda portuguesa não se rendera e estava disposta a mostrar ao mundo, mais uma vez, que a sua ideia de unidade é todos a discutirem. Mas os guardiões do templo PàF, os sumo-sacerdotes da “não há alternativa”, moveram-se e um deles encontrou a saída genial para a perda de maioria absoluta. Em S. Bento, Pedro Passos Coelho abriu a porta do gabinete a Miguel Relvas, que entrou de pastinha.
— Ora cá estamos nós…
— Miguel, não te posso fazer ministro outra vez.
— Nem ia invocar uma coisa dessas em vão. Sabes que o espírito de entreajuda e solidariedade é o bom princípio geral de uma sociedade que quer ser uma comunidade — comum idade? É natural, pois, que um amigo possa e tenha gosto em dar conselhos ou informações a outro amigo.
— Não estou a perceber, Miguel. Ou será que estou?...
— Encara isto que vou fazer como uma liberalidade, um presente. 
— Tenho a impressão, ou melhor, parece-me, no sentido de “dar um parecer”, que me vais vender uma ideia maluca.
— Bravo, por isso é que tu tens um curso e eu é o que se sabe… Precisas de uma grande figura idónea no teu governo. Alguém na Administração Interna que, enfim, construa um dique comunicacional entre ti e esses socialistas, bloquistas e comunistas sequiosos de poder que te querem afogar com a sua maioria de deputados.
— Por que é estás a falar dessa maneira?
— Sei lá. Só Deus sabe, aliás. Deu-me para isto, com as chuvas. Talvez venha a fazer sentido, em breve.
— Olha lá, não estás mesmo a vender-me esse cromo do Calvão da Silva, o que assinou o atestado de idoneidade do Ricardo Salgado?
— Foi só uma prenda de 14 milhões de um construtor civil, uma liberalidade de amigo. Esse Calvão da Silva tem um percurso impressionante. Do Mosteiro de Singeverga para o topo da Academia de Direito de Coimbra! 
— Que Deus nos proteja.
— Uma infância de caldos pobres com chouriço em Trás-os-Montes e passarinhos do campo. Olha como o descreveram na página do Colégio de Lamego quando ele lá voltou para falar aos novos alunos:  “Durante o encontro nunca puxou dos seus distintíssimos galões académicos, nem do sucesso da sua vida política em part-time. Aguentou o mesmo nível das grandes figuras dos ex-alunos que por aqui têm passado, fasquia já tão elevada, impossível de ser ultrapassada, porque os que por aqui passaram atingiram o brilho da Lua.”
— Vai gozar com outro.
— Isto é que é empreendedorismo e ascensão social. Dá-lhe uma oportunidade. Ele está ali fora a rezar o terço, de joelhos. Merece esta bem-aventurança.
— Bom, chama-o lá. Mas falo com ele a sós.
Miguel Relvas saiu e entrou um homem magro de fato e gravata, hirto como um bastão cardinalício com cabelo de risco ao lado.
— Caro Calvão da Silva…
— Professor Doutor Calvão da Silva, se não se importa, senhor primeiro-ministro.
— Muito bem. Então acha que pode ser ministro da Administração Interna?
— Os sinais acumulam-se. 
— Mas eu ainda não disse nada!
— Não é o senhor primeiro-ministro, é o Senhor Deus do Céu. “E era Noé da idade de seiscentos anos, quando o dilúvio das águas veio sobre a Terra.” E os animais entraram de dois em dois para junto de Noé na arca, macho e fêmea, como Deus ordenara a Noé. Percebeu?
— O que é que isso tem a ver?
— Eles tinham seguro. Já o mesmo não se pode dizer dos egípcios, anos depois. Deus nem sempre é amigo, caros egípcios, entreguem-se a Deus! A Câmara Municipal do Cairo, responsável pelo turismo, não abriu as comportas do Mar Vermelho, mas não foi esse o problema, Deus gosta de dar uns períodos de provação.
— O senhor fala mesmo assim ou está a brincar?
— Mais tarde houve a bomba de Hiroxima, tinha eu sete ou oito anos e andava aos pássaros, mas logo percebi: se Deus me quiser, vou para ministro. Ou a ganhar a vida com pareceres. Ou as duas coisas. Quero a GNR a bater-me a pala! Quero procissões com tochas no Terreiro do Paço! Quero magustos e quermesses!
— Miguel Relvas!!!
— Diz Pedro…
— Não gosto que me escutem atrás da porta.
— Estava só encostado!
Então Passos Coelho convidou Calvão da Silva para ministro e este saiu em júbilo e subiu à Basílica da Estrela, onde jurou castigar e escarmentar todos os ímpios que não respeitassem o esforço divino da PàF, durasse o governo um dia ou dez seguidos. Passos Coelho sentara-se no sofá, extenuado mas sorridente. 
— O homem é perfeito. 
— Vão chover polémicas sobre ele e tu ficas mais resguardadinho, graças a Deus. Como foi no meu tempo. Mas com um professor doutor de Coimbra em vez das minhas equivalências na Lusófona! A vingança come-se fria.
— Miguel Relvas, és o meu seguro. Quanto é que te devo pela apólice?
— Pagas depois, pagas depois.

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