Um Governo disposto a meter o pé na lama

Nas cheias de Albufeira, o ministro que tutela os desastres convidou todos à resignação perante uma troika inexcedível: Deus, o demónio e a natureza.

Choveu. E houve mais um episódio de cheias na cidade algarvia de Albufeira. Há uma intrigante associação entre a água que vem do céu e a que se acumula nas ruas, inunda casas e arruína negócios. Curioso fenómeno.

Ficou tudo submerso, as avenidas, os passeios, o rés-do-chão de muitos edifícios. O que estava no caminho foi arrastado, incluindo automóveis, mobiliário, alimentos, lixo.

Instalou-se o clamor habitual nestes episódios diluvianos. Os responsáveis autárquicos reivindicaram a declaração do estado de calamidade pública. Os comerciantes revoltaram-se, com um dedo acusador numa mão e a outra estendida, a pedir apoios. Nós, jornalistas, entrámos em modo catastrófico.

No dia seguinte, chegou o ministro. Calçou galochas e pôs-se em campo para ver os estragos. Nos cenários de crise, há uma certa crença no poder cicatrizante da presença governamental. É algo que advém do magnetismo próprio das altas posições hierárquicas, capaz de atrair câmaras e microfones num raio de vários quilómetros. E perante a audiência expectante, sempre há qualquer coisa que se diga para minorar os desconsolos.

Neste caso, o ministro que tutela os desastres convidou todos à resignação perante uma troika inexcedível: Deus, o demónio e a natureza. Eis a ordem dos acontecimentos, segundo a versão oficial: a natureza enfureceu-se, descarregou chuva em doses demoníacas e Deus, provavelmente ocupado, não pôde ajudar.

Na pedagógica linguagem dos meteorologistas, aquilo a que o ministro designou como “fúria da natureza” foi, na verdade, “uma depressão com 1013 hPa centrada no Norte de África, em processo de cavamento, que no seu movimento para noroeste veio a posicionar-se às 12 UTC na região de Faro com 1009 hPa e, no final do dia, no Atlântico a sudoeste de Cabo Raso (38ºN 10ºW), onde atingiu um mínimo de 1005 hPa”. Seja lá o que isso significa, deixou tudo debaixo de água.

A cólera dos elementos pode ser uma vingança por se ter metido em manilhas debaixo da terra uma ribeira que antes ali passava livremente. Por cada nova rua sobre o que antes era um vale, a cidade teve de pagar com hectolitros de água a sufocá-la. E em cada nova cheia, reclamaram-se condutas de maior diâmetro para encarcerar a enxurrada. Dizem que hoje já lá cabe um camião. Mas não o demónio, pelos vistos.

Como os infantes, os erros do passado são inimputáveis. Por isso, sempre haverá alguém a reivindicar que a sociedade como um todo pague os prejuízos que poderiam ser cobertos por um seguro particular. É o ser humano a jogar com o risco, mas com regras marotas. Se ganha, embolsa as apostas. Se perde, solicita um resgate.

Nos desastres naturais de 2014 no mundo todo, os prejuízos foram superiores em 1,2 biliões de euros ao valor dos bens protegidos por apólices — segundo uma resseguradora internacional, que evidentemente quer expandir o seu negócio. A esta conta serão agora adicionados imóveis alagados, carros encharcados e objectos perdidos em Albufeira, incluindo uma vaca decorativa, ornada com as cores da bandeira nacional, que apareceu nos noticiários a flutuar na torrente.

Seja como for, na edificante versão das autoridades, a culpa foi mesmo da chuva. De resto, garantem-nos que tudo funcionou bem: os alertas, a prevenção, o socorro e as galochas do ministro. O recém-empossado Governo pode ter os dias contados, mas pelo menos veio preparado para meter o pé na lama.

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