Somos todos romancistas de nós próprios

O escritor espanhol Javier Cercas partiu do caso real de uma impostura descoberta em 2005, e através da fabulosa história dessa personagem – um octogenário que durante décadas se fez passar por deportado e sobrevivente dos campos nazis – reflecte sobre o passado espanhol e sobre as nossas máscaras.

Foto
Muitos dos livros de Javier Cercas são escritos na primeira pessoa, usada como um instrumento narrativo, e O Impostor não foge à regra: o narrador tem o nome do autor DANIEL ROCHA

“Eu não queria escrever este livro”, assim começa o romance O Impostor, o mais recente livro do espanhol Javier Cercas (n. 1962). Mas depressa o leitor se apercebe de que se trata de uma face do dilema em que o escritor se encontrou quando lhe surgiu a ideia de escrever sobre um caso real, pois sentia que havia naquela personagem qualquer coisa que lhe dizia profundamente respeito, mas que ao mesmo tempo lhe levantava alguns problemas morais. A personagem era real e chamava-se Enric Marco: um octogenário barcelonês que, durante quase três décadas, se fez passar por um deportado republicano na Alemanha de Hitler, sobrevivente dos campos nazis – foram cerca de nove mil os espanhóis deportados – que durante anos presidiu à associação espanhola dos sobreviventes, a “Amical de Mauthausen, que deu centenas de conferências e dezenas de entrevistas, que recebeu condecorações oficiais e que falou no Parlamento espanhol em nome dos seus “companheiros de desdita”; até que, dias antes da celebração do 60º aniversário da libertação dos campos nazis, em 2005 – que teria lugar no campo de Mauthausen, na Áustria, com a presença do presidente do governo espanhol e na qual Enric Marco discursaria em nome das vítimas e dos sobreviventes do Holocausto – um historiador espanhol descobriu que a história de Marco não verosímil, ele não fora deportado e nunca tinha sido prisioneiro num campo de concentração

“Esta história fascinou-me pela complexidade”, disse Javier Cercas em entrevista ao Ípsilon. “Escrevo romances sobre algo que não sei, que não entendo, sobre acontecimentos que façam interrogar-me. Escrevo-os não exactamente para responder às perguntas que me coloco mas para as formular da maneira mais complexa possível. Não me interessam romances que dêem respostas definitivas, para mim a resposta é o caminho da busca. Por isso não há nos meus livros respostas claras, taxativas, como acontece nos romances policiais. As respostas terão de ser sempre ambíguas, pois sem ambiguidade não há literatura.”

O caso de Marco colocava a Cercas várias questões, algumas delas fundamentais: Como é possível que alguém minta sobre um dos maiores crimes da História da Humanidade? Como foi possível que durante tanto tempo toda a gente tivesse acreditado nele? O que o levou a fazer aquilo? “Tive muitas dúvidas, morais e pessoais. Muita gente me dizia que se eu escrevesse um livro sobre Marco estaria a justificá-lo”, continua Javier Cercas. “Primo Levi referindo-se a Auschwitz ou à sua experiência do campo de concentração, escreveu que talvez o que aconteceu não deva ser compreendido, na medida em que compreender é quase justificar. Ao fim de algum tempo, tornou-se para mim claro que esta é uma dúvida falsa, toda a obra de Levi é uma tentativa de compreender. Compreender não significa justificar. O que acontece é que são as vítimas os únicos que não têm de compreender. Mas para os outros, compreender o mal é uma das formas de o combater. Há que saber como funciona a bomba para a podermos desactivar. Shakespeare faz-nos compreender um psicopata com ‘Ricardo III’. Dostoievski faz-nos compreender o assassino de uma idosa. Ambos iluminaram os labirintos morais até aos seus últimos recantos. Isso é o que retrata a grande literatura. Shakespeare, por exemplo, em ‘Macbeth’ e em ‘Hamlet’, faz retratos de hipérboles monstruosas que existem em todos os seres humanos. Todos temos um pouco de Macbeth e de Hamlet, por isso essas obras continuam a fascinar-nos. Enric Marco é para mim uma hipérbole monstruosa da impostura, e de uma maneira ou de outra todos somos impostores. Esta era uma das razões porque o caso deste impostor me afectava e me fazia pensar em escrever o livro.

O Impostor é, segundo Cercas, “um romance sem ficção”; a excepção é um capítulo preenchido com um diálogo entre o narrador e a personagem, e que é talvez o mais importante do livro. Enric Marco é uma personagem assombrosa, excepcional dentro da monstruosidade que ele próprio criou. A vida de Marco durante décadas foi ela própria uma ficção trabalhada ao pormenor. No romance fica clara a opção de Javier Cercas de que o caminho para chegar à “verdade” do caso Marco não seria o da ficção mas o da verdade dos factos. “É um romance sem ficção porque este livro fala de um senhor que era uma mentira ambulante, uma ficção ambulante. Pareceu-me não ter sentido escrever uma ficção sobre outra ficção. O que fazia sentido era por a ficção e a realidade em confronto no mesmo ringue, no livro. A mim não me interessava condenar, mas tentar perceber os mecanismos que fizeram a história acontecer. E neste caso de Marco, tentar perceber como foi possível que uma personagem assim tenha sobrevivido durante décadas sem que ninguém se tenha interrogado sobre a sua veracidade.”

Foto
DANIEL ROCHA

Memória histórica
Porque é que toda a gente acreditou em Enric Marco? Esta é uma das principais questões postas pelo romance, que não dá apenas uma resposta, mas várias, por vezes até contraditórias ou ambíguas, mas a literatura, como sabemos, “tem de ser ambígua”. Uma das respostas mais duras para os espanhóis tem a ver com aquilo a que se chamou “memória histórica”, um movimento que quis olhar o passado de determinada maneira, com algum arrojo político, e que era entendido como necessário e justo, de maneira a discutir e a acabar com algumas realidades franquistas que persistiam na sociedade espanhola. “Não gosto da expressão ‘memória histórica’ porque me parece um oximoro, uma contradição em termos”, diz Javier Cercas, “como ‘matrimónio feliz’ (risos). A memória é subjectiva, individual. A História aspira ser total, objectiva, factual.” Esse movimento, é sabido, fracassou, transformou-se numa espécie de “indústria” da memória. O que começou por ser uma necessidade acabou como uma moda. A “memória histórica”, foi utilizada pelos meios de comunicação e pelos políticos para os seus interesses particulares. “Marco é o espelho monstruoso dessa ‘indústria da memória’. Contava o que toda a gente queria ouvir quando falava dos campos nazis, do franquismo, da guerra. Ele ocupou aquilo a que Primo Levi chamava ‘as zonas cinzentas, as zonas de sombra’, onde os verdugos se transformam em vítimas e estas em verdugos. Quando se trata das partes mais duras da nossa vida não gostamos da verdade. Preferimos mascarar. Por isso toda a gente andava contentíssima com Enric Marco, ele contava tudo o que queríamos ouvir. A incapacidade de afrontar o passado, o nosso próprio passado, é aquilo que Marco retrata. Ele foi possível porque era o nosso reflexo. Sem os meios de comunicação nunca teria existido. Os nossos dias são um tempo mais propício à impostura. Neste livro tento contar um século da História de Espanha através da história de Marco.”

Narcisismo
Na história de Narciso contada por Ovídio, o oráculo dá-lhe uma estranha resposta à pergunta se irá viver muito tempo, diz-lhe: “Sim, se não te conheceres a ti mesmo”. Ora, um dia, Narciso, que se sabia belo porque todos lho diziam, olha-se na água, horroriza-se, cai e morre afogado. Narciso não se enamora de si mesmo, mas fica horrorizado com aquilo que descobre de si. Enric Marco, como se descobre no romance de Javier Cercas, é esse Narciso de Ovídio, que não gosta de si mesmo, o contrário do que normalmente se entende por narcisista. Ele cria uma imagem extraordinária de si próprio, uma vítima do nazismo, um herói da resistência ao franquismo, mas porque se horroriza com a sua própria realidade. Ao longo do romance, e em capítulos que vão alternando, Cercas indaga o passado de Marco desde o seu nascimento, e descobre um homem que teve sempre uma vida muito cinzenta, duríssima, que nasceu num asilo psiquiátrico (a sua mãe estava louca), que cresceu em várias famílias, de casa em casa, e que depois da guerra fez o que fizeram a maioria dos espanhóis, aceitar resignadamente o franquismo, sem se rebelarem contra ele, sem terem tido nenhuma militância política. “A sua história verdadeira é muito mais interessante. Mas não é brilhante, heróica, mas antes medíocre, prosaica, cinzenta”, diz Cercas.

No período da Transição, os tempos da passagem da ditadura à democracia, Espanha está a reinventar-se, e ele reinventa-se também por completo: muda de trabalho, muda de cidade, muda de mulher – trinta anos mais nova, meio francesa – arranja um passado anti-franquista, revolucionário. Isto aconteceu com Enric Marco mas, recorda Javier Cercas, “aconteceu também, claro que numa outra escala, com muitos políticos, intelectuais, com a classe dirigente que inventou para si um passado anti-franquista. Há pouca gente capaz de se aceitar como é, todos nos maquilhamos para os outros, todos precisamos de uma imagem para agradar aos outros, todos somos um pouco como Marco, somos romancistas de nós próprios. Contamos de nós uma história com uma linguagem maquilhada, ajeitada para os outros. A Espanha foi narcisista? Sim, no sentido em que se contou a si própria uma história embelezada, maquilhada. Porque a verdade é quase sempre dura.”

Muitos dos livros de Javier Cercas são escritos na primeira pessoa, usada como um instrumento narrativo, e O Impostor não foge à regra: o narrador tem o nome do autor. Nietzsche disse que falar de si mesmo é a melhor forma de se ocultar, recorda Javier Cercas. “Todos os romances são autobiográficos, não porque contem a vida do autor mas porque se baseiam nas suas experiências. Mesmo o que não aconteceu é parte da nossa biografia, porque o imaginámos, porque o quisemos experimentar, porque de alguma maneira o vivemos. Quando escrevo falo da minha experiência porque é o material que tenho. Unamuno dizia que falava dele porque era o que tinha mais à mão. O que me interessa é converter a minha experiência numa possível experiência de todos os leitores. Isso tem riscos, mas quem não quer correr riscos não é escritor.”

Sugerir correcção
Comentar