O rei que trouxe até nós o fundo do mar

D. Carlos era apaixonado pelo mar. Nas suas 12 campanhas oceanográficas estudou o plâncton, a rota dos atuns e tubarões e trouxe animais exóticos das profundezas do oceano.

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D. Carlos queria saber o que se passava no fundo do oceano. Desde muito jovem que sonhava com isso. Dizia-se na altura — estamos ainda no final do século XIX — que quando o mar se tornava muito escuro e muito frio, bem lá para baixo, a vida deixava de existir. Mas o futuro rei de Portugal desconfiava que não era assim.

Um dia, o príncipe Alberto do Mónaco passou por Lisboa no seu iate, e Carlos, então com 15 anos, conheceu-o. Ficou fascinado com o barco do príncipe e com as histórias das campanhas oceanográficas que este já iniciara. Estava decidido: Carlos — que já se dedicava à observação de aves e que aos 13 anos enviara para o museu da Escola Politécnica o primeiro espécime por ele capturado — iria explorar o fundo do mar.

Vem toda esta história a propósito de uma visita ao Aquário Vasco da Gama. Sempre ali fui ver os animais que vivem no aquário e pouca atenção prestei à extraordinária colecção de seres marinhos recolhidos pelo rei D. Carlos nas suas campanhas oceanográficas.

Das 12 que fez, a primeira, de 1896, foi a mais importante. O relatório dessa aventura no Yacht Amélia (o rei teve quatro iates, mas baptizou-os a todos com o nome da rainha), tal como toda a biblioteca científica de D. Carlos e alguns desenhos do seu diário náutico, estão, desde 1935, à guarda do Aquário.

O rei queria, como escreveu no seu relatório, “dar a conhecer, por meio de um estudo regular, não só a fauna do nosso plan’alto continental, mas também a dos abysmos que, exemplo quasi único na Europa, se encontram em certos pontos a poucas milhas da costa”. Delimitou a zona junto a Cascais, Sesimbra e Setúbal e fez-se ao mar com o apoio fundamental de um engenheiro civil que se tornou o seu braço direito neste estudo dos oceanos, Albert Girard, e de dois fiéis cães-de-água, o Tejo e o Sado.

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Para conseguir resultados, procurou informação junto daqueles que mais sabiam destas coisas do mar: os pescadores. Inspirou-se no espinhel, uma linha com vários anzóis e adaptou-a para a pesca em águas profundas — a perto de 2000 metros, quando ainda poucas décadas antes se pensava que a vida acabava aos 500 metros.

O aquário guarda muitos destes instrumentos usados nas campanhas oceanográficas: por exemplo, uma garrafa metálica para colheita de amostras do mar em profundidade (outra coisa que interessava muito a D. Carlos era o estudo do plâncton e, combinando o gosto pela fotografia com a paixão pelo mar, devem-se a ele as primeiras fotografias de zooplâncton, com larvas de crustáceos por exemplo, tiradas em Portugal).

O entusiasmo era tanto que, conta-se, o rei chegou a atirar-se à água quando apareceu junto ao barco um animal estranho que veio a descobrir-se ser um cachalote anão. Depois de conseguirem apanhar à mão o animal, D. Carlos desenhou-o e enviou o desenho numa carta ao seu amigo Alberto do Mónaco.

Hoje, carta, desenho e cachalote estão expostos na sala de museu no primeiro andar do aquário, ao lado de muitos outros animais extraordinários capturados nas campanhas do rei: muitos tipos de crustáceos, já totalmente brancos e guardados em belíssimos frascos antigos de vidro, esponjas de várias formas, aranhas-do-mar, raias, um belo peixe-lua, um peixe-anjo, duas tartarugas gigantes e muitos tubarões, entre os quais um baptizado “tubarão-demónio que D. Carlos acreditou inicialmente tratar-se de uma espécie nova (afinal tinha já sido localizado no Pacífico, mas nunca no Atlântico).

A rota dos atuns, por exemplo, foi um dos assuntos que lhe despertaram especial interesse e que melhor estudou, porque acreditava que era um tema com importância económica para o país. E, para perceber melhor o funcionamento das correntes, foram, durante estas campanhas, lançadas ao mar garrafas com um bilhete postal e um selo para que pudesse ser enviado sem mais encargos. Assim se saberia para onde a corrente tinha levado cada garrafa.

Depois dessa primeira recolha — minuciosamente descrita por D. Carlos no relatório — o rei quis fazer uma exposição na Sociedade de Geografia, para mostrar aos portugueses o que existia no mar. Poucos anos depois, em 1898, para as comemorações dos 400 anos da descoberta do caminho marítimo para a Índia, decide construir o Aquário Vasco da Gama. E hoje é aqui que podemos ver, naturalizados (uma técnica de conservação diferente do empalhamento), todos os animais que D. Carlos trouxe do mar, alguns deles dos profundos abismos desconhecidos, onde, afinal, havia vida.  

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