Tratadística do Jogo de Râguebi

Foi um privilégio ter assistido ao vivo à final. Demonstrando as vantagens da evasão sobre a colisão, o vencedor foi, na expressão das duas equipas, o râguebi de movimento

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O jogo final do Mundial entre a Nova Zelândia e a Austrália foi um tratado. Mais: foi um conjunto de tratados, de tratado estratégico, de tratado táctico, de tratado técnico, de tratado de ensaios. Tão bom, tão explicativo das boas práticas que, enquanto conjunto de formas adequadas de fazer, merece ser considerado como Tratadística do Jogo de Râguebi. Ou seja, que, por tudo o que mostra, deve ser utilizado como exemplo. E como tal, visto e revisto, estudado e voltado a estudar para daí se tirarem as conclusões que permitam desenvolver o râguebi no sentido do futuro.

 

Tratado estratégico

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Estatística da final

Estrategicamente e na procura de impor os seus pontos fortes e minorar pontos fracos, a Austrália, face à tipologia morfológica actual dos jogadores que ocupam a posição de centro, decidiu poupar os seus jogadores - abertura Foley e centro Giteau - dos eventuais impactos das colisões nos "duelos" individuais; por outro lado e face às capacidades dos All Blacks, decidiram utilizar, tirando partido das capacidades dos seus Genia, Foley e Giteau, o jogo ao pé, explorando o jogo aéreo dos pontas que consideraram como ponto fraco adversário; a pretensão de tirar partido da capacidade de recuperar bolas no chão de Pocock, levou à sua colocação como n.º 8 para que, podendo ser o segundo placador, pudesse ser mais eficaz na sua acção recuperadora. A isto juntava-se a confiança na capacidade da sua formação ordenada com que esperava surpreender, com combinações desequilibradoras - ensaio contra a Inglaterra - a linha de defesa neozelandesa, bem como na resposta defensiva - como se viu contra Gales e agora com 68 placagens na 1ª parte - permitiam o optimismo pretendido para jogar e vencer uma final.

 

Uma vez que, com excepção do bombardeamento sobre os pontas, a Austrália já tinha mostrado nos jogos anteriores as suas intenções, a Nova Zelândia preparou a sua estratégia de resposta com o objectivo de marcar tão cedo quanto possível como demonstram os seus 64% de posse de bola e 81% de ocupação do campo adversário nos primeiros 20 minutos de jogo para terminar a 1ª parte com 71% de posse. Decidindo antes do mais tirar partido da colocação central dos dois terceiras-linhas, Hooper e Pocock, na zona central do campo; apostando na ultrapassagem da linha de vantagem para garantir a superioridade numérica após o primeiro breakdown - o recurso a mais homens do que os necessários em defesa para garantir a continuidade seria compensado pelos jogadores adversários que tinha ficado para trás - e, utilizando o jogo ao pé para obrigar o três-de-trás a recuar, pressionar para garantir o retorno da bola para contra-atacar com espaços abertos ou, obrigar a chutar para fora, conquistando terreno e podendo utilizar o alinhamento enquanto um dos seus pontos fortes.

 

Os dados estratégicos, neste mastermind isolado, distante e sem intermediários, estavam lançados.

 

Tratado táctico

Como forma de responder, decidindo pelas acções adaptadas às circunstâncias, à pretendida pretensão de poupar os seus centros, os australianos colocaram, nos alinhamentos, Giteau no corredor de cinco metros e Foley como 2.º defesa, colocando Hooper e Pocock como defensores do centro do campo.

 

A vitória neozelandesa começou a desenhar-se neste domínio. Reconhecendo-se superiores nos alinhamentos (100% nos seus 14 contra 7 em 10 adversárias) e até porque, com esta táctica, não era possível aos australianos utilizarem um terceiro saltador, os All Blacks lançaram-se em três objectivos: realizar os alinhamentos tão rápido quanto possível para tirar partido na demora organizativa do esquema táctico dos australianos; atacar a linha de vantagem por forma a garantir superioridade numérica - Carter recebia o passe na linha de Aaron Smith com os defensores australianos ainda no seu campo; atacar a "dobradiça" por forma a obrigar os dois especialistas recuperadores a manterem-se na linha defensiva exterior e não os deixando assim participar no ruck. A juntar a esta estrutura, os All Blacks acrescentaram o seu factor genético, a organização em losango em torno do portador, para garantir o apoio necessário à manutenção da continuidade enquanto elemento principal de criação de desequilíbrios.

 

Não menos interessante foi a demonstração táctica da capacidade australiana de explorar a superioridade numérica quando da suspensão temporária do defesa neozelandês Ben Smith. Desta adaptação positiva, resultaram 14 pontos que fizeram passar por Twickenham a possibilidade de um volte-face.

 

Mas de novo o império da táctica neozelandesa se impôs na preparação soberba do tempo - até porque um estádio interno o havia adivinhado - para a realização do pontapé de ressalto com que Carter terminou com quaisquer dúvidas sobre o novo Campeão Mundial.

 

No entanto e acima de tudo porque exige um cumprimento integral de diferentes conceitos - A equipa primeiro! O nós superior ao eu! O portador comanda, eu sigo! Avançar sempre! manter a bola viva! - a capacidade de convergir sobre o companheiro portador da bola marca a grande diferença dos All Blacks para todas as outras equipas. E fez a diferença, neste jogo e no campeonato em geral, correspondendo ao domínio de uma vantagem táctica inigualável.

 

A capacidade de compreensão táctica neozelandesa demonstrada nas alternâncias de "largo envolvente"/"penetrante agrupado" conseguidas numa constante adaptação às circunstâncias propostas pelo portador da bola ou pela organização defensiva numa cascata de tomadas de decisão que permitem a passagem do losango ao turbilhão, qual bando de estorninhos, de alterações constantes de liderança e de direcção e que representam, pelo referencial que exigem, um estádio superior de entendimento do jogo a que uma técnica apurada na eficácia da acção dá a realização necessária. E tudo começa na formação de jogadores com métodos que hoje enquadramos na designação de "game sense". E com a certeza que, sendo o domínio técnico muito importante, é na sua aplicação táctica, quer individual quer colectiva, que o seu valor absoluto é atingível.

 

Tratado Técnico

Porque o jogo não é um circo de demonstração de habilidades, a técnica pela técnica de nada serve. Só a técnica integrada numa expressão táctica enquadrada numa determinada estratégia garante a eficácia necessária à obtenção dos resultados desportivos procurados. Neste circuito integrado, a técnica representa o domínio das ferramentas disponíveis para efectivar cada acção.

 

E é essa integração - na táctica individual e colectiva - que permite a fluidez do jogo que as equipas apresentaram e que se mediu pela capacidade de manuseamento da bola que deram provas as duas equipas - com superioridade, também aqui, para os neozelandeses (os australianos cometeram 12 erros) que demonstraram as vantagens do conceito "passar e agarrar" que os segue desde o início da sua formação até aos dias de hoje - meia-hora antes do início da final vi dois segundas-linhas, parados e separados por cerca de sete metros, a passarem a bola, tensa, de um para o outro durante cinco minutos em gestos precisos. Assim mesmo, sem mais! Também a recepção - lembrando o conceito de Barry John "atira que eu agarro" - se realiza a níveis que permitem a continuidade de sequências quando tudo parece já perdido. Claramente com custos para a defesa.

 

E se a demonstração das qualidades técnicas dos dois "formações", Aaron Smith e Will Genia, foi enorme, a velocidade de passe do neozelandês - principalmente da base dos rucks - garantiu sempre, pela manutenção dos desequilíbrios conseguidos, um tempo de avanço aos seus companheiros. E se a isto juntarmos a sua capacidade de leitura de cada situação, percebemos o porquê da designação de "melhor do Mundo".

 

De um ponto de vista formativo, o jogo teve uma qualidade demonstrativa: o desenvolvimento indivudual para o jogo está na aprendizagem simples das técnicas básicas - passe, recepção, corrida, pontapé, placagem - introduzidas num espaço de liberdade, experiência e objectivos. Com o propósito de ordenar colectivamente cada momento de desordem que o próprio jogo produz.

 

Tratado de ensaios

Uma final com cinco ensaios não é comum. Menos ainda se se trata de uma final de um Campeonato do Mundo. Mas foi o que aconteceu e significa uma atitude diferente por parte de ambas as equipas na forma de encarar e enfrentar os fantasmas de um jogo de "matar ou morrer". O que diz muito da transformação que estas duas equipas trouxeram ao jogo e à sua expressão.

 

Foram cinco ensaios para todos os gostos: de criação colectiva de combinações para garantir corredor livre de penetração; de organização colectiva para impor uma força; de exploração imediata de oportunidades (3.º e o 5.º do jogo); de organização colectiva em movimento com jogadores disponíveis para se adaptarem à visão e gesto técnico do portador da bola.

 

A criação do primeiro ensaio do jogo é notável: depois de uma série de rucks, Aaron Smith salta Cole (que corre para dentro a chamar adversários) e passa a bola para os pés de Conrad Smith que agarra, verticaliza para então direccionar a sua corrida "para dentro" e desequilibrar toda a defesa com uma "dobra" a entregar de novo a Aaron que entrega a McCaw que solta Milner-Skudder para o ensaio. Simples, tacticamente a atacar o fraco, com ângulos de corrida adequados à disposição defensiva, tecnicamente no tempo exacto e a jogar colectivamente.

 

No segundo ensaio All Black e para além de um espectacular passe em carga de Sonny Bill Williams, é a manutenção da posição no losango de Ma'a Nonu que garante a continuidade a que um "inside-out" de escola vai permitir uma corrida de 50 metros para colocar o resultado em 21-3.

 

Com a suspensão de Ben Smith, os australianos viram nascer-lhes a esperança com a marcação de dois ensaios: o primeiro numa excelente organização de "maul dinâmico" - que, provavelmente, não vai ser mais autorizado desta forma após a próxima alteração das Leis do Jogo - e o segundo num excelente aproveitamento do então "dois-de-trás" dos neozelandeses. Foley, no corredor exterior direito acena a pedir a Genia que jogue ao pé para o espaço desprotegido, Genia responde, Foley capta e, dando as costas aos adversários, passa para Kuridrani marcar um ensaio de belo efeito a colocar o resultado em quatro pontos de diferença.

 

E se já havia o extraordinário pontapé de ressalto de Carter a pôr calma, dento e fora do campo, nas hostes neozelandesas, o último ensaio colocou a taça no topo do bolo All Black. E o mais impressionante desse movimento foi a perícia técnica com que Barrett, em elevada velocidade e depois de ter ultrapassado os seus adversários, teve o controlo, num gesto técnico de alto nível, para tocar a bola com o pé e conduzi-la na direcção da área de ensaio.

 

Realmente foi um privilégio ter assistido ao vivo a esta final. Principalmente porque, demonstrando as vantagens da evasão sobre a colisão, o vencedor foi, na expressão das duas equipas, o râguebi de movimento. O que torna esta Rugby World Cup 2015 inesquecível.

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