A Bach o que é de Bach, a Godin o que é de Godin

Anos e de estúdios e digressões fizeram Nicolas Godin, dos Air, sentir uma insatisfação crescer em si. Encontrou salvação em Bach e Glenn Gould. O resultado é Contrepoint, álbum que apresentará no Vodafone Mexefest

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Godin confessa que está a tornar-se difícil a reinvenção dos Air, mas a banda continuará de uma forma ou de outra, em discos ou em concertos

Visto de fora, os Air até pareciam razoavelmente activos. Talvez não tanto quanto nos primeiros anos de carreira, ainda assim, ouvimos Love 2, sexto álbum do duo francês, em 2009, chegou três anos depois a nova banda-sonora para Le Voyage Dans La Lune, o fundador filme de ficção científica de George Méliès, e, o ano passado, Music for Museum, disco de edição limitada, resultado de uma encomenda do Palais des Beaux-Arts de Lille.

Entre os lançamentos, Nicolas Godin e Jean-Benoît Dunckel fizeram o habitual. Pegaram nos instrumentos, recrutaram músicos para os acompanhar e partiram para mostrar a sua música nos palcos que os quisessem receber. Mas, sob a capa de normalidade, algo acontecia. E a consequência disso que acontecia é Contrepoint, o agora editado primeiro álbum a solo de Nicolas Godin, inspirado em Johann Sebastian Bach e na releitura que dele fez o pianista Glenn Gould – esse foi o ponto de partida, o de chegada é substancialmente diferente, como confirmaremos quando, dia 28 de Novembro, for apresentado no Vodafone Mexefest, em Lisboa.

“Quando comecei [os Air] criava música a toda a hora. Ultimamente, ao entrar em digressão, estava sempre a tocar as mesmas canções todas as noites. Um trabalho repetitivo”. Directamente de Paris, o músico que baptizou a banda que nos ofereceria Moon Safari com um acrónimo de “Amour, Imagination, Rêve” (“Amor, imaginação, sonho”) explica a causa da insatisfação que o corroía nos bastidores dos concertos. “Ainda é uma experiência mágica pelo encontro com o público, mas no resto do dia não fazes nada a não ser esperar. Enquanto criador, sentia-me frustrado. Pensei que devia andar menos em digressão e passar mais tempo no estúdio”.

Estávamos em 2007 quando se deu o clique no insatisfeito Nicolas, desejoso de “chegar a casa e viver o amor pela música que sentia antes”, em criança, quando “a música era um lugar maravilhoso, mágico e cheio de inocência”. Ele, há tanto músico profissional, sentia que essa magia se desvanecia, contaminada por todas as obrigações implicadas na gestão de uma carreira. “Queria voltar à fonte e descobri-la novamente, sozinho ao piano”. Um DVD de actuações de Glenn Gould, o genial pianista canadiano que assinou, em 1955 e em 1981, as míticas releituras das Variações Goldberg de Bach, oferecido em digressão por um dos músicos dos Air, funcionou como desbloqueador. Esteve aí o primeiro passo para este Contrepoint que agora nos chega (o título é, obviamente, uma referência a Bach, mestre absoluto na técnica do contraponto na composição musical).

A duração de um vinil
Mergulhamos no álbum. Arpejo de teclados sobre guitarras ruidosas, rock ambiental, com mais teclados a criarem o discurso musical, bálsamo para o ouvinte de auscultadores nos ouvidos e olhos fechados ao mundo para deixar a imaginação voar livre – e depois um coro barroco, o F.A.M.E. da cidade macedónia de Skopje, a cair sobre aquele space-rock desenhado com precisão de arquitecto meticuloso (a canção, segundo do álbum e baseada, como todas, em composições de Bach, chama-se Widerstehe doch der sünde [Resiste ao pecado] e os versos pertencem ao poeta alemão do século XVII Georg Christian Lehms). Porém, à medida que avançamos pelos oito temas do disco, que se esgota em pouco mais de meia hora – “gosto de álbuns curtos e queria que o álbum tivesse a duração de um vinil, que é a duração perfeita para um álbum” -, vai-se diluindo a presença de Bach e Gould que, a início, fazemos por reconhecer.

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MATHIEU CESAR

O compositor alemão inspira toda a admiração a Nicolas Godin. “Foi o primeiro a estabelecer regras musicais gramaticais para a música no livro The Well-Tempered Clavier [O Cravo Bem-Temperado]. No que diz respeito à música ocidental, é completíssimo e muito preciso. Ouves uma canção na rádio, levas um disco para casa e é certo que todos os esquemas musicais contidos neles já foram descritos por Bach há 300 anos”. Quanto a Glenn Gould, a sua influência foi, porventura, ainda mais decisiva. “Passava por um período de falta de inspiração e, ao ver Glenn Gould, percebi como é possível transformar algo universal numa manifestação pessoal. Impressionou-me muito e quis fazer qualquer coisa de semelhante, mas à minha maneira. Ele mostrou-me como escapar ao meu beco sem saído. Abriu-me a porta”.

Continuamos a ouvir Contrepoint. O subtexto jazz, cool como Dave Brubeck, de Club Nine. A sugestão bossa-nova de Clara, flauta e secção de cordas incluída, tratada como Gainsbourg a trataria e cantada com a doçura habitual por Marcelo Camelo. As cordas picando a melodia enquanto sintetizadores zumbem e uma guitarra acústica cria a base de Glenn – e o piano a citar Gould antes de a voz de Gould, ele mesmo, vindo directamente dos anos 1960, nos falar da demanda do músico moderno por uma ”raison d’être”. Ouvir-se-á a italiana Flavia Eusepi em “spoken word” em Quei Due 6, canção criada como ilustração ambiental, Morricone nas proximidades, das palavras ditas. E ouviremos ainda o magnífico épico Bach off 7, afro-jazz luxuriante com Connan Mockassin como convidado à guitarra, que se transformará em tensão de policial, algures entre o dramatismo de Bernard Herrman e a “coolness” criada por Lalo Schifrin para Bullitt. A despedida, Elfe man 8, faz-se com coros etéreos, cordas em pizzicato e vibrafone celestial – como se ouvíssemos Nicolas Godin a recolher novamente a esse espaço mágico do sonho e da infância a que tanto desejava aceder quando se libertou a insatisfação que fermentava dentro de si.

No fim, todo o Bach e todo o Glenn Gould se transformaram noutra coisa. “Eles foram muito importantes para dar arranque ao processo, mas quando ouvi o disco finalizado, concluí que é, afinal, um tributo aos meus compositores de bandas-sonoras preferidos. O conceito é importante para começar o trabalho, mas assim que começas, tens que esquecer o conceito e deixar a intuição ser tua mestra e guiar-te” – tendo em conta que, minutos antes, nos confessava que, antes do mergulho na obra de Bach, o seu contacto com música clássica se resumia aos compositores de bandas-sonoras tão influentes na sua obra, todos eles de formação erudita (citou John Barry, John Williams e Ennio Morricone), surpreende menos que Contrepoint tenha resultado assim.

Lançando um olhar para o futuro, fica a sensação que o está para vir poderá ser o mais interessante a florescer de todo o processo que conduziu a este curioso Contrepoint. No texto de apresentação do álbum incluído no CD, Nicolas Godin diz ter chegado a um ponto, depois de duas décadas de trabalho enquanto músico profissional, em que se sente forçado a “desvendar o enigma da música em si mesma”. Ao telefone, diz-nos que é tarefa insolúvel. “Fazer um álbum é tentar chegar o mais perto possível da resposta e a único forma de tentar chegar perto é senti-lo. É um mistério. Não podes descrevê-lo com palavras, não podes tentar racionalizar. Sentes uma presença, e se sentes essa presença, estás no bom caminho”. Com os Air, confessa, tem sido difícil senti-la. “Está a tornar-se mais difícil reinventarmo-nos, mas nunca pararemos os Air. De uma forma ou de outra, em discos ou em concertos, continuaremos”. Quanto ao seu trabalho a solo, as perspectivas são totalmente distintas.

“Usarei a música como um veículo para descobrir novos mundos. Gravo porque sou músico, mas também me interessam outros universos e uso a música para os conhecer. O próximo disco será, com toda a certeza, algo completamente diferente”. Nicolas Godin descobriu que tem uma nova estrada aberta perante si. Agora, aos 45 anos, começou a percorrê-la.

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