Cavaco e a legitimidade eleitoral
aqueles que há 40 anos se queixavam da “opressão revolucionária” contra a legitimidade eleitoral querem agora impor contra ela a “opressão” do compromisso europeu interpretado a seu bel-prazer.
Desde que Spínola, apoiado por Sá Carneiro e pela direita militar, viu derrotadas pelo MFA e pela esquerda, no verão de 1974, as suas propostas de um presidencialismo de monóculo e de descolonização sem descolonizar, que a direita portuguesa construiu o mito de que a Revolução portuguesa dos anos de 1974-76 impusera, nas palavras do mais teimoso dos seus líderes, Cavaco Silva, à “sociedade civil [a opressão] do poder militar revolucionário”, uma “tutela coletivista imposta pelo golpe comunista e socialista do 11 de Março” (discursos de 19.12 e 19.5.1990). Ninguém esperaria que o mais impopular dos presidentes da democracia fosse um historiador minimamente rigoroso, mas Cavaco é campeão da manipulação histórica, mais ao estilo de um banal ditador que de um líder de governo democraticamente eleito. Ouvi-lo descrever a Revolução democrática portuguesa faz-nos retroceder aos termos com que Salazar descrevia em 1930 a I República: “período de agitação permanente e orquestrada, de convulsão sistemática, de intranquilidade generalizada, de perseguições, de insegurança do cidadão, de ruína da economia nacional, da tentativa de aviltação das mais nobres instituições e da própria Instituição Militar, da tentatativa de descaracterização cultural do nosso Povo” (discurso de 4.3.1991). Não surpreende que o mesmo homem que nada percebeu do que aconteceu aos portugueses nos últimos cinco anos, nada tenha percebido da democratização portuguesa.
Desde as eleições de 1975, ganhas pelo PS (38%), com a direita reduzida a 34% (pouco menos do que agora) e uma esquerda que se revia na Revolução com os mesmos 21% de votos que obteve nas eleições de 2015, que a direita e os socialistas reivindicaram a supremacia da legitimidade eleitoral sobre a legitimidade revolucionária. Lembremo-nos que a democracia portuguesa se construiu desde o dia 25 de Abril de 1974 sobre a base de uma dupla legitimidade, tanto a eleitoral quanto a revolucionária. Esta foi assumida em 1974-76 por protagonistas militares que cumpriram plenamente o compromisso de respeitar direitos e liberdades básicos e convocar eleições (constituintes, legislativas e presidenciais) dentro dos prazos previsto, acataram a Constituição livremente aprovada por 93% dos deputados eleitos com a mais alta participação de votantes (91%) da nossa história, e constituíram governos provisórios com uma ampla maioria de pessoal civil representativo da grande maioria do quadro político que emergiu das eleições (salvo o 5º, que durou apenas um mês, por ausência voluntária do PS e do PPD, mas no qual participavam figuras muito próximas destes partidos).
Esta velha discussão sobre o modelo português de democratização decorre precisamente porque ele se construiu por via revolucionária, operando uma rutura com o passado - rutura política, porque derrubou a mais longa ditadura da Europa Ocidental; rutura social, porque removeu as elites económicas e sociais dos 150 anos anteriores; rutura económica, porque mudou a estrutura da propriedade; e rutura cultural, porque triunfaram os valores de emancipação da dominação colonial e a de género contra as mulheres e as minorias de orientação sexual, da exploração do trabalho e dos jovens forçados à guerra e à emigração. O caso português não é exceção alguma: por rutura nasceu a grande maioria dos regimes políticos europeus do séc. XX; exceção foram as transições à espanhola. E ruturas assim não agradam nada aos herdeiros das classes dominantes que, associadas ao antigo poder, acompanham a sua queda.
As direitas, que resistiram 100 anos – 150 em Portugal – ao sufrágio universal, invocam a legitimidade eleitoral apenas quando percebem que os votos podem diluir grandes mudanças sociais. É então, e só então, que elas clamam por urnas contra greves e assembleias de trabalhadores, tropa contra manifestantes. Quando, pelo contrário, as eleições confirmaram vontades de rutura, com programas de universalidade de direitos sociais, preservação de serviços públicos, expropriação de riqueza abusiva, ou direito à autodeterminação, não hesitaram em promover golpes militares contra governos democráticos (Espanha, 1936, Brasil, 1964, Grécia, 1967), assassinando presidentes (ou candidatos) reformistas (Guatemala, 1954, EUA, 1963 e 1968, Chile, 1973); quando temeram que a pressão popular forçasse à mudança do rumo político, orquestraram estratégias de tensão, terrorismo de Estado ou por ele induzido (Itália, 1947-48 e anos 1970, Indonésia, 1965, Argentina, 1974-76, Espanha, 1976-85), policializaram as sociedades muito para lá do constitucional e democraticamente concebível (RFA, anos 1970, EUA e o conjunto dos Estados do Ocidente desde, pelo menos, 2001).
Por outras palavras, legitimidade eleitoral sim, desde que seja a boa... É por isso que no debate português sobre a origem e o desenvolvimento do nosso regime democrático é sinistro que um presidente da direita questione diretamente a legitimidade eleitoral que resulta do voto de há um mês como elemento central da configuração da vontade democrática. E que a direita tenha inventado dois outros critérios casuísticos para sobre eles fundar a origem do poder: (i) uma espécie de Constituição alternativa, feita de tratados europeus (ratificados por via parlamentar mas nunca pela eleitoral) e de uma enteléquia a que se tem chamado parceria transatlântica, em substituição de facto da Constituição de jure; e (ii) a da lógica do governo automático para a lista mais votada, mesmo que contra ele se reuna uma ampla maioria dos votos.
O segundo critério, por mais que se invoque como numa hipnose de circo, é o mais facilmente descartável dos dois. Escuso de repetir argumentos; basta lembrar que quem transformou lógicas destas em letra de lei foi Mussolini, em 1923, ao inventar o prémio de maioria (65% dos lugares no Parlamento) para a lista mais votada. Muito mais grave é apercebermo-nos que, querendo eliminar desde 1976 a Constituição que acabara de votar (o PPD, pelo menos), a direita conseguiu ir impondo a sua estratégia de governar sem ela, declarando-a incompatível com a integração europeia. Desde que Cavaco subiu ao poder, logo a seguir ao tratado de adesão (1985), os governos, de uma forma ou de outra, atuaram como se os tratados europeus tivessem precedência sobre as normas constitucionais. Isto é, o arco da governação adotou, de facto, outra Constituição. Precisamente, lembremo-lo, como as ditaduras que nem se deram ao trabalho de reformar a constituição em vigor, limitando-se a ignorá-la porque incompatível com a Nova Ordem imposta. Os liberais têm destas coisas...
Nesta retórica mal amanhada, aqueles que há 40 anos se queixavam da “opressão revolucionária” contra a legitimidade eleitoral querem agora impor contra ela a “opressão” do compromisso europeu interpretado a seu bel-prazer.