A diferença entre um programa e uma resma de papel

Bruxelas pede um caminho de reformas. A direita ignora e a esquerda faz de conta que não é nada com ela.

Ao contrário do que muitos pensavam (eu incluído), o acordo à esquerda não é nenhuma aberração ideológica. É um programa normal, que até chega a ser banal. Pelo que já se conhece do acordo, podemos estar descansados que António Costa não irá levar o país à bancarrota. Mas também não o fará sair da cepa torta. O acordo tem a preocupação de não desequilibrar as contas públicas, mas não tem absolutamente nada de estratégico, de reformista ou de estrutural. Apenas uma fé inabalável de que a reposição dos rendimentos fará espevitar o consumo, o consumo fará acelerar o crescimento e o crescimento tratará de pôr em ordem as contas públicas. E se alguma coisa falhar nesta cadeia de eventos?

Esse é o grande risco do acordo à esquerda; o PCP e o Bloco de Esquerda deram a António Costa um automóvel para conduzir que só tem acelerador, mas não tem travões. Se for preciso austeridade para consolidar as contas públicas, o país vai capotar, porque o acordo à esquerda não admite austeridade sobre salários, pensões e impostos. É por isso que os comunistas mostram grande resistência em integrar um governo PS; ninguém, à excepção de Catarina Martins, gosta de se sentar no lugar do morto.

O acordo à esquerda não será, como escrevia João Miguel Tavares aqui no PÚBLICO, um Frankenstein keynesiano-leninista. Porque não é keynesiano, nem é leninista; é só Frankenstein. Está longe de ser o programa estruturado que Mário Centeno idealizou e com o qual os socialistas se apresentaram a eleições. Quer se goste, ou não, o modelo de Mário Centeno tinha pés e cabeça. Tinha até mais: tinha um aviso que nesta altura vale a pena revisitar. No último parágrafo do programa original lia-se que “o conjunto de medidas apresentado tem uma coerência interna que importa manter”. E umas linhas mais à frente escrevia-se que “é fundamental para assegurar a credibilidade das medidas como um todo e evitar uma adopção circunstancial que desvirtuando o todo possa criar desequilíbrios susceptíveis de pôr em causa a coesão nacional ou os compromissos internacionais que venham a ser assumidos num quadro de negociação multilateral".

Ou seja, é o próprio PS a admitir que o seu programa assenta num equilíbrio que se for alterado pode colocar em causa as contas públicas. Folheando o programa que os socialistas apresentaram às eleições de Outubro, o que sobra do programa macroeconómico de Mário Centeno? A medida mais emblemática da TSU caiu, o congelamento das pensões desapareceu, o despedimento conciliatório vai para as urtigas, e há uma série de medidas (penalização das empresas com excessiva rotatividade de trabalhadores, diversificação das receitas da Segurança Social e mexidas na TSU das empresas) que vai ser enviada para as calendas gregas, que é como quem diz para a concertação social.

Ao que sobrou do programa de Mário Centeno, que foi muito pouco, o PS fez-lhe um enxerto à esquerda, depois das negociações com o PCP e o Bloco: as pensões até 628 euros serão actualizadas à taxa da inflação, a TSU desce mas só para salários abaixo dos 600 euros (e sem contrapartidas), a reforma do IRS de Lobo Xavier com a qual os socialistas se comprometeram é metida numa gaveta e os salários na função pública são devolvidos na totalidade em 2016.

Não é propriamente um Frankenstein keynesiano-leninista; é apenas o programa do PS que foi esvaziado das suas medidas mais importantes e ao qual se juntou uma prótese à esquerda que, desde que não se abane muito, não há-de desmontar-se. Mas é um programa oco, sem alma, sem objectivos, sem reformas. Será um amontoado de medidas, uma resma de papel sobre a qual António Costa vai subir para chegar ao poder, mesmo depois de ter perdido as eleições.

Pior é quando se olha para a direita, somos confrontados com um programa que estará todo ele pendurado por arames e medidas temporárias de austeridade que mostram que ainda há muito por fazer no capítulo da reforma do Estado. É angustiante a quantidade de medidas temporárias que foram ontem renovadas no Conselho de Ministros: sobretaxa, cortes salariais na função pública, a contribuição extraordinária de solidariedade, a contribuição extraordinária sobre o sector energético, a contribuição sobre a indústria farmacêutica, a taxa adicional sobre o IUC, o adicional sobre o ISP e a contribuição extraordinária sobre o sector bancário. Com tanta medida extraordinária é caso para dizer que o programa de governo da coligação PSD-CDS também terá pouco ou nada de extraordinário. Mas ao menos tem o decoro de não aliviar austeridade de uma assentada sem ter alternativas de reforma para as compensar.

Ainda ontem, a Comissão Europeia veio dizer que é necessário que Portugal prossiga “de uma forma decisiva” o caminho das reformas. E a agência DBRS, a única que nos mantém em "investment grade", a avisar que o nosso rating poderá ir para lixo se “o compromisso político para uma política orçamental sustentável enfraquecer". Olhamos para a direita e não vemos o caminho das reformas e olhamos para a esquerda e vemos um enfraquecer do compromisso orçamental. E começamos a pensar na diferença entre aquilo que deveria ser um programa de governo e aquilo que é uma resma de papel.

 
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