“Quando o cancro da mama volta, a mulher pensa que a culpa é sua”

A directora da Unidade de Mama da Fundação Champalimaud alerta que o foco na prevenção faz com que as mulheres com tumores mais avançados se sintam esquecidas e perdidas. Nesta quinta-feira arranca em Lisboa um encontro sobre o cancro da mama avançado.

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Bruno Lisita

Há um grupo cada vez maior de sobreviventes de cancro da mama. Em média, 70% das pessoas dão a volta a este diagnóstico, mas a oncologista Fátima Cardoso avisa que ainda é “devastador”. Aos 49 anos, a directora da Unidade de Mama da Fundação Champalimaud considera que os rastreios e a aposta na prevenção têm feito muito pela doença. Contudo, numa entrevista ao PÚBLICO, alerta que há um grupo importante de doentes que tem ficado esquecido. Refere-se aos cancros da mama diagnosticados já numa fase avançada, quando existem metástases, e às situações em que há uma recaída. Diz que nestes casos há um sentimento de culpa e de abandono por parte das mulheres.

O tema do cancro da mama avançado vai ser precisamente o centro de uma conferência de três dias que começa nesta quinta-feira em Lisboa e que reúne 1200 profissionais de 71 países. A médica portuguesa é presidente deste encontro, conhecido como ABC (Advanced Breast Cancer). Na reunião espera chegar a consensos sobre a melhor forma de tratar o cancro da mama e alertar para a necessidade de novos medicamentos. Defende que com o actual conhecimento era possível reduzir a actual mortalidade em 30%, mas explica que para isso era preciso ter melhores dados, como saber quantas pessoas vivem de facto com tumores avançados.

Tem já uma carreira longa nesta área. O que mudou quando tem de dizer a um doente que tem cancro?
Dizer a alguém que tem um cancro é sempre uma notícia devastadora e que vai mudar a vida da pessoa. Mas actualmente o cancro da mama precoce, diagnosticado atempadamente, tem uma probabilidade de cura no global superior a 70% e nalguns subtipos mesmo de 90%. É muito bom poder dar essa notícia juntamente com a do diagnóstico. Outro momento, bem mais dificil, é o do diagnóstico de uma recidiva, ou seja, quando o tumor que inicialmente era localizado volta, apesar dos tratamentos, o que acontece em um terço dos casos. Cerca de 10 a 15% dos casos já são diagnosticados com metástases, ou seja quando o cancro já não está localizado na mama e axila e aparece noutros órgãos. Infelizmente nestes casos é uma doença incurável mas tratável. Há várias possibilidades de tratamento e foi isso que mudou na última década.

Fala-se muito nos medicamentos inovadores. No cancro da mama em particular já estamos na fase da medicina personalizada?
Ainda estamos longe. O que conseguimos fazer é a medicina de subtipos de cancro da mama. O grande boom do conhecimento biológico aconteceu em 2000 com a descodificação do genoma humano e em seguida a descodificação do genoma dos vários tumores. Conseguimos subdividir o cancro da mama em quatro grandes subtipos que se comportam de formas diferentes e que precisam de tratamentos diferentes. Desde então tem-se subdividido cada um dos subtipos e conhecem-se grupos cada vez mais pequenos. O ideal um dia seria sabermos como é que um determinado tipo de tumor se comporta numa pessoa. Perceber o que é que no nosso corpo favorece que as células tumorais da mama tenham tendência a ir para o fígado, ou cérebro, ou ossos. Se o conseguirmos perceber podíamos tentar prevenir que isso acontecesse.

Áreas como o melanoma avançado ou o cancro do pulmão têm tido novidades marcantes. A curto prazo é expectável que surja um medicamento destes para o cancro da mama avançado?
Dentro dos quatro subtipos, o subtipo Her2 Positivo foi o que teve mais avanços. O primeiro tratamento biológico dirigido às células tumorais foi para este subtipo de cancro da mama. Dois outros medicamentos foram entretanto desenvolvidos e transformaram o que era um dos subtipos mais agressivos no que hoje é aquele com que as mulheres podem viver mais tempo. O subtipo triplo negativo é neste momento o mais agressivo e nesse não temos conseguido grandes resultados. A sobrevida global do cancro avançado são dois a três anos e as mulheres que vivem menos são normalmente as que têm este triplo negativo. Os cancros do subtipo luminal, dependente das hormonas, são os subtipos intermédios. A sobrevida tem estado estagnada desde os anos 1990 mas esperamos novos medicamentos que venham mudar isso.

Em termos de incidência de cancro e de sobrevida estamos bem comparando com os outros países europeus?
Estamos dentro da média dos chamados países desenvolvidos. A incidência de cancro globalmente está a aumentar e do cancro da mama em particular também. Actualmente uma em cada três pessoas terá um cancro durante a sua vida e estima-se que dentro de uma década seja uma em cada duas. Por isso mesmo chamamos ao cancro a nova epidemia. O cancro da mama é de longe e vai continuar a ser o mais frequente, ainda que não seja o que mata mais. O cancro do pulmão começa em muitos países a ter nas mulheres uma mortalidade superior ao cancro da mama.

Há cada vez mais mulheres que tiveram cancro da mama e que sobreviveram. Estamos preparados para este grupo?
Há dois tipos de sobreviventes, os que passaram por um diagnóstico e tratamento e que estão bem, sem evidência de doença e que precisam de vigilância. Há problemas específicos dessas pessoas que têm a ver com as consequências dos tratamentos que fizeram. Depois há os sobreviventes com doença, que têm um cancro avançado e que conseguem viver vários anos. É como se fosse uma doença crónica, com um tratamento constante e com o impacto que isso tem na vida de alguém. Precisam por exemplo de adaptação ao nível do emprego o que ainda é muito raro.

Mas ainda há muito preconceito?
Há muitas doentes com cancro que escondem, pelo estigma e pela forma negativa como são olhadas. Nos anos 1970 era tabu dizer a palavra cancro. Ainda hoje os media dizem que se morre de "doença prolongada". O enorme avanço não foi visto no cancro avançado. Há demasiada enfase no rastreio e no diagnóstico precoce no cancro da mama – que são importantíssimos – mas dá-se a ideia de que se tiver uma alimentação saudável, que se fizer exercício físico, for ao médico e fizer o seu rastreio que não tem a doença ou tem mas é tratado e curado. Quando o cancro volta a mulher pensa que a culpa é sua. Além desse sentimento de culpa há um sentimento de abandono porque os grupos de apoio não querem doentes metastáticos, querem que sejam cor-de-rosa, não querem falar daquele um terço que não tem um final feliz.

Nesta conferência que decorre para a semana em Lisboa vão receber 1200 profissionais de mais de 70 países. Qual é o objectivo?
Esta conferência foi criada no sentido de desenvolver as primeiras recomendações internacionais de como tratar o cancro da mama avançado. A cada dois anos reunimos os maiores peritos e revemos o que aconteceu e o que houve de novo e emitimos as recomendações de como tratar os diferentes subtipos de cancro avançado em todos os países do mundo. A investigação é sem dúvida muito importante, mas a educação é indispensável. Acredito que se todos doentes fossem tratados de acordo com o conhecimento já existente podíamos diminuir a mortalidade em 30%. Um dos aspectos mais importantes do ABC é que os grupos de apoio a doentes com cancro avançado estão implicados como parceiros iguais.

Mas não são os próprios médicos que são um pouco ‘alérgicos’ a protocolos e que sentem que lhes retiram liberdade?
Há recomendações que não têm a ver directamente com os tratamentos. Uma das recomendações é proporcionar aos doentes com cancro avançado um tratamento multidisciplinar, que já é aplicado no cancro precoce e que tem levado a uma melhoria da sobrevida. Temos tido muita dificuldade na implementação desse mesmo conceito no cancro avançado porque há ideia de não se perder tempo com doentes incuráveis. A maior parte destas doentes são tratadas apenas pelo oncologista e hoje existem técnicas avançadas de radioterapia e de cirurgia para tratar determinado tipo de metástases e se isso não for discutido numa equipa multidisciplinar perde-se o que se pode fazer. Isto não tem a ver com medicamentos muito caros mas com a reorganização dos cuidados de saúde. Este ano faz dez anos que dois trabalhos, que são um marco e que levaram à criação do ABC, foram publicados, mostrando que estas doentes não falavam da doença, se sentiam isoladas e abandonadas, pelos profissionais de saúde, pelos grupos de apoio e mesmo em relação a família e amigos. Infelizmente a realidade mudou pouco, como mostra um estudo mundial feito este ano em 34 países e que será apresentado no ABC.

Que dados existem sobre estes doentes avançados em Portugal?
Não existe um registo oncológico que conte os doentes com cancro avançado. Na maioria dos países – inclusive nos Estados Unidos – os registos oncológicos inscrevem diagnóstico e morte. Sabemos a incidência e a mortalidade mas ninguém regista recidivas. Se lhe quiser dizer quantas mulheres existem em Portugal a viver com cancro avançado, não posso. Sabemos que por ano há cerca de 6000 novos diagnósticos e que morrem 1500 mulheres. Mas não sabemos quantas mulheres existem em 2015 em Portugal com cancro avançado e que precisam de tratamento. Se não sabemos como é que podemos dedicar recursos?

A que mais consensos querem chegar no encontro?
Um dos problemas que vamos debater muito é o acesso a tratamento. Há uma desigualdade muito grande e não é entre países, é dentro do mesmo país, nomeadamente cá, entre o sistema público e o sistema privado.

Mas de acesso a coisas importantes?
Sim. Os medicamentos para o subtipo Her2 positivo são muito bons mas muito caros, entre 2500 a 6000 euros por mês. O novo medicamento para o cancro luminal, aprovado ainda apenas nos Estados Unidos, custa dez mil dólares por mês. Nenhum sistema de saúde, por mais rico que seja, consegue continuamente absorver este custo.

Tem uma solução para o problema do preço?
Não temos encontrado abertura suficiente nos decisores para discutir soluções. Como vamos ter dinheiro para tratar um em cada dois portugueses? Há uma pressão para usarmos estes medicamentos [inovadores] para todos, mas temos que saber identificar quais são os doentes que verdadeiramente beneficiam deles e utilizar só nesses. A Sociedade Europeia de Oncologia (ESMO) publicou este ano uma ferramenta que permite uma avaliação objectiva da magnitude do benefício de cada tratamento, que será uma grande ajuda para os decisores.

Está a falar de modelos como o da hepatite C de pagar em função dos resultados do medicamento?
Exactamente. A nível da ESMO fizemos um mapeamento do que acontece na Europa. Tomámos o exemplo da Roménia em que há acesso a um medicamento caríssimo mas com classificação muito baixa na escala de benefício e não há acesso a medicamentos mais baratos com classificação topo. Há um desconhecimento de quem toma as decisões. Mas o problema também está no acesso a medicamentos baratos e Portugal sofre muito com isso. Os medicamentos mais antigos estão a desaparecer mas são esses que mais vidas salvam. Mesmo quando a indústria farmacêutica os produz,os distribuidores desviam-nos para países como a Alemanha que podem pagar muito mais. Tivemos em Portugal mais de um ano sem um medicamento que é indispensável para dar a quimioterapia e para tratar metástases cerebrais.

O que se pode fazer para resolver isso?
Os EUA fizeram acordos com a Índia, em que as fábricas na Índia são inspeccionadas pelos norte-americanos, assegurando a qualidade necessária e que fornecem os doentes da Índia e dos EUA. Estamos a bater-nos para que a Europa pense numa solução deste género. Ao nível de cada país é difícil resolver, sobretudo nos mais pequenos. Temos de nos unir.

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