Houve um tempo em que Portas evitava dormir em casa por causa dos processos

Enquanto criava o “seu” CDS, o antigo director d’O Independente demolia o cavaquismo. Marcelo acha que Paulo Portas "nunca resolveu o seu problema com o PSD". Mesmo que todos estejam, hoje, passados tantos anos, no mesmo barco...

Foto
O Independente dedicou a Cavaco 91 manchetes entre 1988/95 DR

Filipe Santos Costa e Liliana Valente são jornalistas com passagens fugazes pelo semanário que marcou uma época importante da política portuguesa. Lançado a 20 de Maio de 1988, O Independente fechou no dia 1 de Setembro de 2006. Mas o livro que os dois jornalista escreveram conta a história no seu período principal: da fundação até à saída de Portas, em 1995. O resultado é este O Independente: A Máquina de Triturar Políticos, lançado esta quinta-feira, em que os autores oferecem "a história de um jornal, da política da época e o retrato de um país", nas palavras de Filipe Santos Costa.

Da “peuguinha branca” às “unhas compridas do dedo mindinho” dos ministros de Cavaco, raros foram os que, como Dias Loureiro, escaparam às tintas carregadas deste “projecto jornalístico e político”. Como jornal, O Independente inovou, evangelizou, conquistou. Como política, falhou quase sempre. Na época. Hoje, passados exactamente 20 anos da saída de Portas, a história é outra. A direita uniu-se, Portas faz campanha entre as bases do PSD, Cavaco contribuiu para a união. E Marcelo Rebelo de Sousa é o candidato mais bem colocado para manter a Presidência.

Curiosamente, como este livro revela, Marcelo foi o primeiro protagonista de um projecto político de Portas. Mas a estratégia de "namorar o marcelismo" falhou, com a vitória de Jorge Sampaio à frente de uma coligação com o PCP na capital. Em 1991, dois anos depois da derrota de Marcelo, Cavaco conquistaria a segunda maioria absoluta. E O Independente foi o seu mais empenhado opositor.

Portas, que substituira Miguel Esteves Cardoso na direcção do jornal, criou a candidatura de Basílio Horta às Presidenciais desse ano, para embaraçar o apoio do PSD ao segundo mandato de Mário Soares.

Na página 262, o livro explica como tudo se passou: "Foi ele [Basílio] o escolhido por Portas e Luís Nobre Guedes. Este saiu dos bastidores para ser director de campanha, Portas continuou na sombra como ghostwriter do guião do candidato, e O Independente funcionou como máquina de spin da candidatura."

Hoje, Portas e Basílio têm uma lembrança diferente do que se passou. Basílio conta que "foi uma coisa complicada": "Foi um erro.(...) Eu nunca fui um homem daquela direita. Fui levado a isso. Precisava daquele discurso para ganhar votos. Mas foi errado. Mesmo sobre a Europa: eu tinha uma fé modesta na Europa, mas o Paulo Portas não tinha nenhuma." (Pág. 265)

Entretanto, o projecto de Portas teve de se conformar com as repetidas vitórias de Cavaco. O jornal dedicou-lhe, neste período (88/95), 91 manchetes. E uma lista de adjectivos (pág. 53): "Vaidoso, vulgar, manipulador, demagogo, narcisista, cínico, estatista, burocrata, maníaco, altivo, autocrata, autoritário, despótico, carismático, egocêntrico, justiceiro, pseudo-iluminado, bimbo, banal, curto, limitado, paroquial, parolo, prepotente, medroso, sem brilho, sem dimensão, arrivista, reacionário, obtuso, confuso, cego, surdo, esquálido, interesseiro, inepto, simplista, oportunista, populista, mediano, salazarzinho de subúrbio, imitação barata, vingativo, tosco, arrogante, um bom hipócrita, pequeno, piroso, pusilânime.

Assim era Cavaco Silva, na caracterização exuberante de O Independente." Portas chegou a escrever que Cavaco merecia "um estalo", num momento de retórica mais arrebatada.

Um dos pontos fortes da leitura deste trabalho de Liliana Valente e Filipe Santos Costa é a evidência de que o "preconceito de classe" contra Cavaco e boa parte do "cavaquismo" não surge, como é voz corrente, das elites culturais da esquerda mas desta precisa elite cultural e política da direita. "Eles representavam uma elite sofisticada e culta, que votava um enojado desprezo à vulgaridade pequeno-burguesa e parola do Portugal cavaquista", escreve Vicente Jorge Silva, no prefácio do livro.

Enquanto isso, Portas ia dando forma ao "plano B": tomar conta do CDS e fazer dele um partido de direita assumida, eurocéptico. Manuel Monteiro, com quem Portas se cruzara no início da década de 80 na Universidade Católica, foi o protagonista do plano.

Manuel Monteiro explica aos autores: "Tínhamos os votos, tínhamos esta ideia de conquistar o CDS, mas não tínhamos o lado da corte. Tínhamos a macaquice para as reuniões das assembleias distritais, mas não para a grande política. E o Portas – aliás, o Luís Nobre Guedes – percebe isso: estes miúdos descobriram um diamante, mas não o sabem lapidar."

Mas Paulo Portas escrevia no jornal como se estivesse alheio a tudo: "Tudo visto, [Monteiro] é quem merece o benefício da dúvida. Digo-o eu que sou independente e vejo as coisas de fora do CDS. Se calhar, é mesmo esse o mérito desta opinião."

Manuel Monteiro: "O Portas contava-me todas as histórias em que estivesse a trabalhar que envolviam política. Quem lhe telefonava do Conselho de Ministros a dar–lhe notícias, o que se passava no Governo, o que se passava na oposição. Como ele sabia tudo, eu sabia tudo (...) inventava frases e escrevia discursos."

"Muitas vezes, o CDS convocava à quinta -feira os jornalistas para uma conferência de imprensa no dia seguinte – cujo tema, nunca revelado por antecipação, era uma notícia publicada pel’O Independente nessa sexta -feira", acrescentam os autores.

É claro que esta relação não era apoiada por toda a redacção do jornal. Num emblemático 25 de Abril de 1994, houve uma tentativa de golpe. Helena Sanches Osório convocou a redacção para um almoço na Versailles e "expôs as suas preocupações sobre o futuro do jornal, caso continuasse a ser usado por Portas como órgão oficioso do CDS, e defendeu que o melhor caminho seria a mudança de director". Falharia. Dois dos mais próximos de Portas, Isaías Gomes Teixeira (que seria escolhido para o substituir na direcção) e António Ribeiro Ferreira (hoje no i) opuseram-se a qualquer acção contra Portas.

Com a sua caneta azul Futura, Portas continuou a ditar a linha editorial e a escrever as suas crónicas que, hoje, parecem uma maldade feita pelo jornalista ao político: anti-europeu, defensor da evasão fiscal como forma de protesto... Mas a política acabaria por ser a escolha, a tempo inteiro, na eleições legislativas de 1995. E depois nas europeias de 1999. E depois... d'O Independente ficaram muitas inimizades e um rol de processos judiciais.

"Quando, em 1998, chegou a presidente do CDS, ainda esse passado o perseguia, e as visitas ao tribunal continuavam a fazer parte da sua rotina. (...) Ao ponto de, nas europeias de 1999, as primeiras eleições que enfrentou como líder partidário (ainda por cima, sendo o cabeça de lista), Portas correr o risco de ser detido para ir a julgamento em cima da campanha eleitoral. Para contornar o risco, decidiu, com o seu staff, dormir durante uns tempos fora de casa – se a polícia não soubesse onde estava, não o podia ir buscar para prestar contas pelos pecados d’O Independente. Resultou."

"O plano inicial era fazer um livro sobre as grandes histórias d'O Independente. Mas decidimos focar na parte política e pareceu-nos óbvio que o 'projecto político com jornal de fora', como lhe chamamos, passava por estas duas ideias: a demolição do cavaquismo e a criação de um polo de direita", esclarece Liliana Valente. O resultado é um divertido e surpreendente regresso ao passado de muitas figuras importantes da política portuguesa. E, por essa via, uma útil explicação de alguns mistérios do presente.

Sugerir correcção
Ler 14 comentários