Haja dó do pobre Pessoa

"Pedras no caminho? Guardo todas, um dia vou construir um castelo." Pelo estado actual das coisas, arrisco dizer que, de cada vez que esta frase é dita, morre um panda bebé à paulada

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Enric Vives-Rubio

Desgraçado do Fernando Pessoa. Para além de não ter tido em vida o reconhecimento (nem o dinheiro) merecido, agora deve andar a dar voltas à tumba por causa daquilo que lhe andam a fazer com o nome e — pior ainda! — com os poemas. Nada contra a glorificação do poeta — ele merece-a; mas levar uma reputação até ao limiar da estupidez com recurso a citações que já se tornaram lugares-comuns é idiossincrático da preguicite aguda, da necessidade corrente de parecer que se é culto e, afinal de contas, da falta de cultura que por aí grassa.

"Pedras no caminho? Guardo todas, um dia vou construir um castelo." Pelo estado actual das coisas, arrisco dizer que, de cada vez que esta frase é dita, morre um panda bebé à paulada. Há dias, tropecei por aí num provérbio burundi que assenta sobre este assunto como uma luva: uma palavra que está sempre na boca transforma-se em baba.

Democratizar Pessoa não devia ser sinónimo de banalizar Pessoa. Se queremos citar Pessoa, o Facebook não é o melhor sítio para buscar frases inspiradoras. Basta agarrar numa tecnologia perdida e desconhecida por muitos: um livro. E, pasmem-se, Pessoa é um escritor tão rico que até nos serve a preguiça — basta abrir-lhe uma página ao acaso e esbarramos imediatamente com uma verdade inequívoca e da qual mal tínhamos dado conta até então.

A mercantilização do rosto de Fernando Pessoa talvez seja a grande culpada desta febre, que acabará por fazer com que muitos se afastem do poeta porque já não o podem ver à frente. Em Lisboa, dá-se um pontapé numa pedra e saem de baixo dela três artigos promocionais com a cara do triste sujeito. Dentro de cinco ou dez anos já não será “cool” falar de Pessoa, muito menos pôr-lhe a assinatura numa qualquer sacola ou num desenhito de promoção a uma hamburgueria "pseudo-gourmet-low-cost-coiso".

Desta forma, esgotar-se-á um génio, depois de lhe causarmos um assassinato lento e tortuoso. A nossa maior condenação será a de nem sequer lhe querermos ler os poemas, de tão enjoados que estamos de nos cruzarmos com ele, solitário e macambúzio, deambulando numa rua lisboeta, ou de lhe lermos sempre a mesma frase. Uma ubiquidade homicida. Anos mais tarde, esquecê-lo-emos, como fizemos com outros — ainda alguém cita Camões? O próximo na lista da banalização é o genial e indescritível Herberto Helder. Primeiro, vamos apaixonar-nos à medida que nos afogamos nas suas imagens poéticas e brilhantes. Vamos trabalhar para o democratizar e, logo de seguida, vem a inevitável queda para o que é banal.

E depois, que será de nós sem poetas marcantes?, perguntarão alguns, em pânico. Nada temam. Os que conhecem poesia sabem que não nos faltam bons poetas; o problema é que ninguém se dá ao trabalho de os procurar, preferindo apenas cingir-se às bagatelas de top de vendas. Diz Murakami, e bem, que “pessoas que lêem as mesmas coisas pensam as mesmas coisas”. Faz-nos falta quem pense diferente.

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