Vencer o medo

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1. No domingo passado, no final de mais uma reunião de emergência entre alguns líderes europeus, incluindo Angela Merkel, e representantes dos Balcãs, o jovem primeiro-ministro esloveno Milo Cerar avisou: se esta crise não for resolvida, a Europa desintegrar-se-á. O seu pequeno país de bilhete-postal, que escapou por milagre à agressão da Sérvia e que é hoje um parceiro cumpridor da União e do euro, vê-se a braço com a entrada de milhares de refugiados de passagem para a Áustria, que vêm da Croácia, com os quais não sabe como lidar. Como outros antes dele, já disse que construirá uma barreira na fronteira com a Croácia. As praças de Liublijana estão transformadas em acampamentos. À primeira vista, as suas declarações podiam parecer exageradas, servindo apenas para forçar uma ajuda absolutamente necessária. Não foi só ele que avisou para o risco de desagregação. A própria chefe da Diplomacia europeia, Federica Mogherini, usou a mesma palavra numa entrevista a um jornal italiano. Para ela, ou há uma resposta europeia, ou as fronteiras regressam. Muita gente tem avisado que esta crise dos refugiados toca no coração da integração e da identidade politica europeia.

A crise não vai acabar tão cedo porque uma resposta comum tarda a aparecer e os conflitos no Médio Oriente e em África, a começar pela Síria, não estão, longe disso, em vias de resolução. Os refugiados continuarão a tentar a sua sorte, inventando novos caminhos. Em cada cimeira há mais uma promessa da qual alguns se esquecem rapidamente. A imigração já era um problema central no debate político de vários países europeus, alimentando os partidos populistas e xenófobos que vêm crescendo em quase toda a Europa, infectando a agenda dos partidos de centro-direita (vide Reino Unido). Esta vaga imparável de refugiados deu-lhe uma nova dimensão. François Hollande, que reserva as belas palavras de solidariedade para quando está com a chanceler, faz pouco, movido pela ameaça cada vez mais forte de Marine Le Pen nas eleições regionais que se avizinham. Matteo Renzi, que passou a vida a apelar, em vão, à ajuda dos seus parceiros para a vaga de refugiados que aportavam ao seu país na sequência das Primaveras Árabes, sente-se vingado. A compaixão e a solidariedade com que os europeus receberam os primeiros refugiados deram lugar ao medo. A Europa ainda não conseguiu aceitar que esta crise resulta da desordem nas suas fronteiras, que é um desafio de longo prazo à sua política externa. A falta de visão e de coragem dos seus líderes pode acarretar um preço muito alto no médio prazo.

2. Há uma clara excepção. Angela Merkel, a chanceler da Alemanha, percebeu a dimensão do problema, o seu significado e os enormes riscos de não o encarar de frente. Disse logo no início da crise duas ou três coisas fundamentais, que ainda não negou apesar da forte pressão interna, nas fileiras do seu partido e na opinião pública alemã. Disse que se tratava de uma crise prolongada que iria desafiar a Europa e os seus fundamentos e que os valores europeus não podiam ser abandonados. Começou por dizer: “Nós conseguimos lidar com isto”. Mantem o que disse. Colocou o dedo na ferida, lembrando que esta é também uma crise da identidade europeia e dos seus Estados membros, a começar pela Alemanha. Há 15 anos, só os alemães de sangue tinham direito à cidadania. Os turcos de segunda e terceira geração eram “estrangeiros”. O governo de Gerhard Schroeder mudou a lei em 2000. A Alemanha, diz Merkel, tem de aprender a ser um país de imigração. Só agora os alemães começam a enfrentar a ideia do que é uma sociedade multi-étnica. Os analistas dizem que a chanceler está a perder a sua aura de “mãe” dos alemães e alguns prevêem mesmo a sua queda. Os seus parceiros europeus preferem encolher os ombros. Sem a partilha do fardo, a resposta de Merkel aos seus críticos será muito mais difícil.

Onde está a chanceler rigorosa, prudente e racional? A resposta generalizada é que Merkel está a agir por “convicção”. Porquê? Porque Merkel aprendeu nos últimos dois ou três anos que a Europa não poderia viver fora do mundo e indiferente ao mundo. Há três anos, a chanceler ainda era capaz de dizer, entre dentes, que não tinha de pagar as “guerras da França”. François Hollande tinha decidido enviar forças militares para o Mali tentando estancar o avanço dos jihadistas. Hoje, o Estado Islâmico já provou à saciedade que ele tinha razão. A agressão de Putin à Ucrânia levou a chanceler a perceber que a segurança europeia estava em causa. Berlim foi uma das primeiras capitais europeias a mostrar disponibilidade para manter 800 homens no Afeganistão, acompanhando Obama nesse esforço. Muitos dos refugiados que chegam à Europa vêm do Afeganistão. Quando chegou ao poder declarou que a Turquia podia ambicionar apenas uma “parceria especial”, não olhando para a sua posição estratégica. Foi agora a Ancara oferecer a Erdogan a possibilidade de continuar as negociações de adesão desde que colabore na resolução do problema dos dois milhões de refugiados que estão na Turquia. Como dizia muito recentemente o antigo chefe da diplomacia alemã Joschka Fischer numa conferência na Fundação Notre Europa, a chanceler percebeu que há um mundo lá fora: “Ela mudou dramaticamente nos últimos meses”. “Percebeu que a geopolítica estava de regresso e que não é possível pedir um intervalo.” Fischer desvaloriza as críticas e os ataques dos seus parceiros políticos. A chanceler dispõe de um amplo apoio parlamentar, até porque o seu parceiro de coligação, o SPD, defende a mesma política. Quase 50% dos alemães dizem que ela está a fazer um bom trabalho. E, lembra ainda o antigo líder dos Verdes, os movimentos como o Pegida (contra a islamização da Alemanha) sabem que não podem passar o limite a partir do qual a memória dos alemães reage. Ninguém na Europa está preparado para a substituir, escreve Philip Stephens no Financial Times. Só ela tem força para tentar impedir a saída do Reino Unido. É ela que pode garantir um desenlace positivo para as negociações do TTIP (Parceria Transatlântica para o Investimento e o Comércio).

“Dizem que Merkel se humanizou”, escreve José Ignacio Torreblanca no El País. “Não é isso. O que aconteceu foi que, por fim, ela se tornou numa líder, alguém que não tem medo de ignorar as regras, quando constata que são inúteis e contraproducentes”. Com um bónus adicional: “Angela tem um problema em casa e depende dos seus parceiros para alcançar os seus objectivos? Bem-vinda à realidade”.

Fischer lembra que se trata de uma escolha dramática para a Europa: regressar aos Estados-nações e às fronteiras ou transformar-se numa comunidade de valores partilhados”. O mundo, esse, não vai mudar.

 

 

 

 

 

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