Por cada um, Angola, e em força

1. Todas as mensagens de amor são ridículas. Quando soube que Luaty Beirão decidira terminar a greve de fome, chorei como por um próximo. Não conheço Luaty, nunca estive em Angola, chorava de alívio porque ele não morreria e porque por ele, e por isso, cada um de nós ficava mais forte. Viver não é só perigoso, é muitas vezes inumano, o que faz com que acreditar seja uma alegria rara. Era essa alegria que Luaty me dava, a que nos mantém humanos, homens não só entre os homens mas entre os vivos, ele que é vegetariano e um dia foi de Lisboa a Luanda com dois quilos de frutos secos, confiando na bondade dos estranhos. A confiança cria a bondade ao esperá-la, tal como a falta de confiança cria o contrário. Entre todos os que sempre correspondem, e os que continuam a não corresponder, alguém dará o que nunca pensou. Luaty acreditou que alguém seriam vários, é assim que se viaja, não há outra forma. E ao longo da sua greve de fome de 36 dias, um por cada ano de José Eduardo dos Santos no poder, vários foram cada vez mais, dezenas de milhares, se pensarmos nos que assinaram a petição da Amnistia Internacional, sem contar com tanta gente em Angola de que não sabemos, por falta de acesso, e de liberdade de manifestação. Chorando ao saber que Luaty decidira terminar a greve de fome, mandei uma mensagem a Pedro Coquenão, o músico seu amigo que o acompanhava lá na clínica, em Luanda. Pedro respondeu no minuto seguinte, dizendo que estava ao lado de Luaty, e lhe passaria aquela mensagem de amor. Pois seja, amor a quem o cria.

2. Isto aconteceu terça-feira, o primeiro dia em que Luaty não faria greve. Nessa manhã mesmo falei com um amigo que tem um retrato de Gandhi no chão da sua sala, como os indianos têm pequenos santuários aos pés das árvores, uma figura, uma vela, flores. Também ele acabava de saber do fim da greve de Luaty, alegrava-se por acabar assim ao fim de 36 dias, parecia-lhe o momento certo. Falou-me sobre os jejuns de Gandhi, que tantas vezes soubera parar, e nesse dia mesmo fez questão de me trazer três livros muito sublinhados, incluindo uma tabela com os principais jejuns entre 1914 e 1948. Além de fins purificadores, Gandhi quis, por exemplo, fortalecer grevistas, terminar a violência hindu-muçulmana, acabar com a situação dos intocáveis, protestar contra o colonizador inglês. Alguns foram anunciados como jejuns até à morte, o mais curto durou três dias, os mais longos 21. O jejum de protesto já era uma prática antiga na Índia, mas não apenas. As sufragistas inglesas usaram-no pouco antes de Gandhi, e depois atravessa tempos e lugares, de rebeldes irlandeses a prisioneiros palestinianos, dissidentes cubanos ou Guantánamo. Vários, como Bobby Sands, morreram após um mês e meio em greve.

3. Ao fim de três dias sem comer, o corpo começa a usar os músculos e órgãos para obter açúcar, e o potássio cai para níveis perigosos. Ao fim de duas semanas, há dificuldade em ficar de pé, tonturas fortes, lentidão, fraqueza, perda de coordenação, baixo batimento cardíaco, arrepios de frio. Ao fim de três semanas, a falta de vitamina B1 torna-se um risco sério, podendo causar perda de visão, disfunções cognitivas, falta de capacidade motora. Ao fim de um mês, complicações graves ou permanentes acontecem: dificuldade em engolir água, falta de audição e de visão, dificuldade em respirar e possibilidade de falência de órgãos a qualquer momento. Luaty já estava neste último estádio, perdeu 20 quilos, e no momento em que escrevo, terceiro dia sem greve, continua a só beber líquidos, porque a transição tem de ser lenta.

4. Ao longo de tudo isto, esteve sempre acompanhado pela mulher, com quem tem uma filha de dois anos, pela mãe e pelos amigos. E, à distância, pela avó e por centenas de pessoas que todas as quartas-feiras se têm juntado em Lisboa e no Porto pela libertação dos 15 presos políticos, dos quais ele se tornou a frente mais visível. Rodeado de todo esse amor, tendo todas as razões para se querer manter vivo, arriscou durante 36 dias numa firme determinação, como diria Gandhi. E, a partir do momento em que decidiu parar, os 36 dias transformaram-se num momento histórico, passaram a dividir a cronologia em antes e depois. A grandeza dessa acção existe em si, não depende do que cada um fizer com ela. Se alguém a diminuir, isso só dirá algo sobre quem o diminui. Talvez o regime aguce os dentes, talvez a liberdade fique mais apertada, talvez pelo contrário. O que Luaty moveu em muitos milhares de pessoas é irreversível. Ainda que o regime não mude, a desfaçatez com que tem passado incólume já mudou. Gandhi não acabou com os intocáveis na Índia mas os seus jejuns fizeram com que a intocabilidade perdesse aprovação pública. A questão não é apenas se ou o que vai mudar, mas o que já mudou.

5. Luaty é um entre 15 presos políticos há quatro meses, que por sua vez são 15 entre muitos acusados, perseguidos, torturados na sombra, sem que o nome deles apareça nas notícias de Angola. Alguns dos 15 também passaram dias em greve de fome e pelo menos três foram espancados por quem os mantém ilegalmente presos, muito além do que a lei angolana prevê para detenção antes de julgamento. Os nomes deles, além de Luaty, são: Domingos da Cruz, Afonso Matias “Mbanza Hamza”, José Gomes Hata, Hitler Jessia Chiconda “Samussuku”, Inocêncio Brito, Sedrick de Carvalho, Fernando Tomás Nicola, Nelson Dibango, Arante Kivuvu, Nuno Álvaro Dala, Benedito Jeremias, Osvaldo Caholo, Manuel Baptista Chivonde “Nito Alves” e Albano Evaristo Bingobingo. O processo abrange também Laurinda Gouveia e Rosa Conde, que aguardam julgamento em liberdade provisória, por não terem sido “apanhadas em flagrante delito”. Entre casos menos falados do que estes, mas que o grupo LAPA (Liberdade pelos Presos Políticos em Angola) está a seguir, estão, por exemplo, José Marcos Mavungo, detido há seis meses e condenado entretanto a seis anos de prisão por crime contra a segurança de Estado, por ter tentado organizar uma manifestação pacífica em Cabinda; Arão Bula Tempo, acusado formalmente do crime de tentativa de “colaboração com estrangeiros para constranger o Estado angolano” e também do crime de rebelião; ou o activista Domingos Magno, detido há dias porque, com um passe de imprensa, queria assistir ao discurso sobre o estado da nação na Assembleia da República. Enquanto isto, o Tribunal Supremo demorou dois meses para responder, e rejeitar, o primeiro habeas corpus sobre os 15 e está por responder a um segundo habeas corpus há quase um mês.

6. Não há independência sem liberdade. Estes presos políticos fortalecem mais a independência de Angola do que o regime de José Eduardo dos Santos em 36 anos. Na quarta-feira, a Aministia Internacional entregou na Embaixada de Angola em Portugal petições por angolanos (os 15 presos políticos, mais Mavungo, mais o processo contra Rafael Marques), somando 42 mil assinaturas. Ao fim da tarde, apesar da chuva, e de já estar terminada a greve de fome, o Rossio voltou a encher-se com centenas de pessoas pela libertação dos 15, aquela praça que sempre foi o centro do poder colonizador, agora com faixas pela liberdade penduradas na estátua de D. Pedro IV (aliás, primeiro imperador do Brasil independente). Lá estava a avó de Luaty encontrando velhas conhecidas de Luanda, talvez mais africanos do que nunca com cartazes e velas, rappers cantando o 27 de Maio de 1977, que tanto sofrimento ainda tem para vir ao de cima. Na próxima quarta-feira, a concentração é frente à Embaixada de Angola. O fim da greve de fome de Luaty é só o fim de uma etapa, e muita gente parece sentir aquilo que os 15 têm dito: toda essa força lhes chega, e os fortalece, numa corrente.

7. No dia em que escrevo, quinta-feira, foi publicada uma carta de um dos 15, Nuno Álvaro Dala “com o consenso dos 14”. Ele fala das condições em que estão, “o isolamento e a incomunicabilidade, a água bruta imprópria para consumo, a comida de má qualidade, a escuridão das celas, as camas de betão, os mosquitos e outras condições desumanas”, para além de “alguns companheiros” terem sido “agredidos fisicamente por agentes dos serviços prisionais e outros”. Cita os vários danos que tudo isto lhes causou: “Problemas de visão, infecções no sangue, infecções na pele, infecções urinárias, gastrite, hérnias, amigdalites.” Mas conclui: “Não odiamos o Presidente da República nem aqueles que executaram a trauma urdida contra nós. O perdão é o melhor caminho.” Não têm ilusões quanto ao julgamento de 14 de Novembro, mês dos 40 anos de independência da Angola, crêem que já foram “condenados publicamente pelo regime de José Eduardo dos Santos”. No entanto, ainda assim, propõem a reconciliação: “Pedimos a todos os Angolanos de bem para que PERDOEM ESTA GENTE.”

8. “O fraco jamais perdoa, o perdão é um atributo dos fortes”, é uma célebre frase de Gandhi. Ele também disse que “a força não vem da força física, mas de uma vontade indómita”. E, para quem se esteja a perguntar se tudo isto serve para alguma coisa, há uma outra frase: “Tudo o que fazes é insignificante, mas é importante que o faças.”

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