A morte como arte

Hoje não é, como costumamos dizer, o Dia dos Mortos (ou dos FiéisDefuntos), mas, em Portugal, é como se fosse. Por todo o lado, se ruma aos cemitérios, para lembrar os que morreram. No Porto, rumar ao Prado do Repouso é também rumar a uma visita histórica e artística.

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Tudo depende de como estiver o tempo. Se chover, a visita ao cemitério pode ser rápida, o tempo necessário para acender uma vela, deixar umas flores, talvez trocar algumas palavras com alguém que não se via há muito tempo e que, por ser 1 de Novembro, também estará por ali hoje. Se não chover, é possível que se fique mais tempo. Que se vá pôr mais velas junto de várias campas e jazigos, que se converse mais, que se pare para apreciar o movimento pouco usual no cemitério.

Hoje é dia de Todos-os-Santos, mas em Portugal, o dia que até recentemente era feriado, é associado ao Dia dos Fiéis Defuntos (2 de Novembro), e muitos vão passar hoje por um cemitério. No Porto, o Prado do Repouso perde um pouco o ar de cidade encantada e semiabandonada para se encher de gente.

As pessoas vão entrar naquele território de esculturas de pedra, casas dos mortos sonhadas e concretizadas por artistas como Soares dos Reis. Vão percorrer a avenida central e perder-se, depois, nas secções onde estão enterrados os que procuram, com as palmeiras como companhia, velas e flores por todo o lado. Quando era miúda, o Dia dos Mortos era uma espécie de aventura, um dia louco em que as crianças podiam ficar no cemitério até ser noite e correr por ali, à procura dos amigos da escola que também lá estavam, no meio de um ambiente impregnado de fumo, cheiro a cera queimada e uma lengalenga de rezas quando começava a missa que ali era celebrada. Hoje, já quase não cheira a cera nos cemitérios. As velas modernizaram-se, as velhas lamparinas de barro desapareceram, substituídas por tubos coloridos de plástico, e os mortos que já nos pesam retiraram o carácter infantil de aventura ao Dia dos Mortos. Hoje queremos não ter de ir ali e, se tiver mesmo de ser, ao menos que chova, para termos a desculpa de poder ficar por pouco tempo.

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Se tivermos de ir, ao menos que seja ao Prado do Repouso, onde tudo — a começar no nome — tem um ar menos lúgubre e quase nos distraímos a pensar como o espaço é bonito. O Prado do Repouso, na freguesia do Bonfim, foi o primeiro cemitério público a ser construído no Porto, depois do decreto de 21 de Setembro de 1835, que impedia os enterramentos nas igrejas.

Hoje, até está integrado na Rede Europeia dos Cemitérios e recebe visitas guiadas, mas o convívio inicial da cidade com ele não foi nada fácil. Primeiro, o dono do terreno escolhido para instalar o cemitério, o bispo D. Manuel de Santa Inês, não cedeu de bom grado o espaço que lhe pertencia. Depois, a obra não atraiu interessados e acabou por ser um mestre-de-obras da própria câmara, Luciano Simões de Carvalho, a tomar conta do projecto. E, por fim, as pessoas não se convenciam da bondade de serem enterradas assim, em terreno descoberto. Num artigo publicado n’O Tripeiro, em 1997, o geógrafo José A. Rio Fernandes, diz que a inauguração do cemitério foi mesmo motivo de uma reunião extraordinária da Câmara do Porto, onde se decidiu que a melhor forma de cativar as boas gentes da cidade para esta nova forma de dispor dos mortos era trasladar para o Prado do Repouso alguém ilustre.

A escolha recaiu sobre Francisco de Almada e Mendonça, filho de João de Almada, um dos responsáveis pelo planeamento urbanístico que mudou a cidade e que fora também provedor da Santa Casa da Misericórdia. A 1 de Setembro de 1839, o cortejo com os restos mortais do primeiro ocupante do Prado do Repouso atravessou a cidade, da Igreja da Misericórdia, na Rua das Flores, até ao novo cemitério, marcando a sua inauguração oficial.

Ainda seriam precisos alguns anos para que os portuenses se habituassem ao seu cemitério, mas o Prado do Repouso foi-se transformando, aos poucos, num espaço que já não era só para enterrar os mortos, mas onde estes se faziam lembrar através de obras de arte encomendadas a Soares dos Reis ou Teixeira Lopes. E, depois, há as lendas, como a que ouvi pela primeira vez numa visita que ali fiz com o jornalista e investigador da história da cidade Germano Silva e em que acabámos a observar, ao longe, o túmulo de Teresa Maria de Jesus, com a sua escultura de São Francisco. Ele contou-me, então, como Teresa fora amada por uma “excêntrica” portuense, que, no dia do enterro, roubou a cabeça da morta, acabando por ser julgada e ilibada por isso — o juiz, benévolo, encarou o roubo de Henriqueta Emília da Conceição como um acto de amor.

A história tão excêntrica como a sua personagem podia acabar aqui, mas, no túmulo que Henriqueta mandou construir em 1868, continuam a aparecer flores frescas colocadas não se sabe por quem. Hoje, dia em que o cemitério perde o recato que lhe é habitual, haverá quem se atreva a levar flores a Teresa e Henriqueta ou será que o túmulo será um dos poucos sem visitantes? O Dia dos Mortos, afinal, é só amanhã. E os cemitérios nunca devem perder aquela ponta de mistério que lhes está associada.     

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