Volkswagen, crimes e acasos!

A revista Forbes declarava em fins de Setembro que “a reacção aos problemas da Volkswagen com os carros a gasóleo foi histérica e exagerada”, concluindo que apesar de o “Titanic se ter afundado, as pessoas continuaram a viajar no Atlântico”.

A fraude com carros é um acto recorrente -- recorde-se a Ford, a General Motors, a Hyundai-Kia e vários outros, mas centremo-nos neste recente caso. Pretendemos aqui fazer uma leitura global, deixar dúvidas e conclusões. Se a quantificação da fraude é impressionante -- mais de onze milhões de carros, muitas dezenas de milhares de milhões de custos, queda de cotação na bolsa de 65% entre 17 de Setembro e 1 de Outubro -- reputamos o significado dos acontecimentos bem mais relevantes quando mensuráveis em cidadania, liberdade e vida.

Em primeiro lugar é uma colossal fraude aos consumidores, aos que optaram pelas marcas e modelos viciados e a todos os demais que fizeram escolhas na base de informações erradas. E se, quiçá, beneficiaram de preços mais baixos, foram manipulados, por uma dupla informação errónea. Os níveis de poluição gerados pelo uso do carro eram manifestamente diferentes do anunciado, ao mesmo tempo que a empresa divulgava a sua responsabilidade social, incluso na sustentabilidade ambiental. Falsearam o contrato de compra e venda e coarctaram a possibilidade de uma atitude socialmente responsável da parte dos potenciais adquirentes.

Falsearam informação sobre as emissões de gases que são responsáveis por várias doenças, deterioração dos tecidos orgânicos e morte por asfixia, redução da esperança de vida e da sua qualidade e, também, pelo aumento do efeito de estufa. O facto de ser «só» mais um caso de degradação do bem-estar humano não atenua a gravidade do problema. Havendo boas práticas, as declarações empresariais sobre responsabilidade social também são declarações deliberadas para encobrir uma prática contrária a essa anunciada responsabilidade.

Se estes factos são por si suficientes para concluir que estamos perante uma fraude atentatória da vida, temos que nos perguntar como é possível, numa época em que há tanta atenção às questões ambientais e tão legislada, seja possível acontecer um tal crime. Sobretudo porque as leis são, muitas vezes, símbolos políticos de intenções a não praticar, como quando a falta, ou inadequação, de regulação e fiscalização coexistem, facilitando as práticas fraudulentas. Como informa The Economist são as companhias que testam os seus veículos, sob os auspícios dos organismos certificados pelos governos nacionais.

Se em tais matérias é pouco admissível o erro, muito menos o é um acto deliberado, uma decisão de encomenda das peças e programas capazes de deliberadamente enganar. Se só podemos aplicar o Código Penal a um comportamento empresarial, e aos seus responsáveis, “se se puder provar em juízo o nexo de causalidade concreto entre a conduta do agente e o resultado lesivo”, neste caso estamos perante “uma conduta típica através da criação de um risco juridicamente desaprovado” claramente conducente à atribuição de responsabilidade penal”. E se o Estado de Direito, e a democracia, apontava inequivocamente para a condenação do Presidente da empresa, parece estarmos a assistir à sua desresponsabilização, limitando-se a um pedido de desculpa público, e à reforma luxuosamente remunerada. Como afirmava recentemente um colega do OBEGEF num artigo de opinião, “em nome da decência, por favor, faça-se justiça.”

E se os acontecimentos são cenas de terror da sociedade contemporânea, com muitos cultores e alguns admiradores, a ela acresce que a Volkswagen teve vantagens fiscais e apoios diversos pelas suas preocupações ambientais.

Acrescente-se, além do mais, que tudo se passa com uma marca alemã. Não foi num país displicentemente designado do «terceiro mundo» ou na «mal comportada» Europa Mediterrânica, acusados pelo governo alemão de práticas desviantes. Talvez porque o problema não esteja no país mas no sistema económico mundial, inevitavelmente desigual, e onde um centralismo ideológico impera.

Ignoram-se os custos indirectos que uma tal prática empresarial certamente gerará. Provavelmente, mais uma vez se transfere os custos das fraudes das grandes empresas para os cidadãos.

Mas a Forbes talvez tenha razão. O desrespeito pela ética e pela vida humana não nos devia espantar. As empresas multinacionais, o enfraquecimento dos Estados e a ideologia da eficiência dos mercados têm ampliado a quantidade e o valor dos comportamentos socialmente desviantes, reduzindo as defesas cidadãs, gerando uma espiral de anomia perante tais acontecimentos. Aquelas, e os seus conselhos de administração, orientam-se exclusivamente pelo lucro e pelo poder, coadjuvado pelos prémios de objectivos de curto prazo. O lucro é legítimo e fundamental na sociedade em que vivemos mas não deve pôr em causa a vida. Para que esse equilíbrio seja respeitado é fundamental a regulação e a fiscalização públicas, a ética, a prevenção e condenação das infracções. Como salientam vários autores, as práticas dos conselhos de administração de muitas empresas inserem-se numa subcultura defraudadora à qual só acedem algumas elites político-económicas do mundo contemporâneo.

Devemos ter um cepticismo moderado em relação a tudo o que nos rodeia. Muito do que parece não é e muito do que é não aparece. Reflectindo sobre a ocasionalidade da descoberta da fraude da Volkswagen por um conjunto independente de investigadores somos levados a admitir que as Universidades podem desempenhar um papel importante na fiscalização das práticas empresariais, associado a um reforço da colaboração com as empresas e os cidadãos. A prática de investigação, a interdisciplinaridade e a independência institucional pode transformá-la numa estrutura competente e mais resistente à corrupção. Pode, se se quiser!

Algumas dúvidas finais, brotadas pelo cepticismo metodológico, pelo conhecimento dos «acasos» fabricados e das chantagens subjacentes aos «mercados». Que justifica a especificidade das normas ambientais americanas? Será só coincidência a publicitação da fraude, já anteriormente conhecida pelas autoridades, pouco depois de a Volkswagen passar a ser o primeiro construtor mundial? Os acontecimentos recentes nada têm a ver com a negociação de «comércio livre» entre a União Europeia e os Estados Unidos? Será que a benevolência intolerável perante a condenação criminal da direcção da empresa resulta de acordos prévios, «a bem dos negócios» e das negociatas? Associado fundador do Observatório de Economia e Gestão de Fraude

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