Um placebo arquitectónico

Foto
Incendiou a história e a teoria da arquitectura com os seus textos e livros controversos sobre arquitectura pós-moderna e icónica Miguel Manso

Quando lhe chamo o Papa do star system, ele sorri brevemente hesitando quanto à bondade da ideia. Mas é verdade, Charles Jencks, americano nascido em Baltimore e desde metade dos anos 1960 residente no Reino Unido, carrega o peso de ter incendiado a história e a teoria da arquitectura com os seus textos e livros populares e controversos sobre arquitectura pós-moderna e icónica. De estar no centro do furacão. Quando em 1977 publica The language of post modern architecture que depois vai actualizando em várias edições, quase em tempo real, o mal está feito. Aluno de Sigfried Giedion e Reyner Banham, dois dos nomes maiores da história e teoria da arquitectura moderna, avança para o campo incerto que primeiro define a contragosto como pós-modernismo e depois assume com uma convicção fulminante e consequente efeito polemizador. Rapidamente será apontado como o principal responsável pelo desnorte da arquitectura contemporânea embora cultive um modo taxonómico e sintético de entender a história da arquitectura. O pluralismo com que se define, de origem americana, não é de fácil digestão para um mundo muito marcado pelas premissas europeias da arquitectura moderna.

A morte da segunda mulher Maggie Keswick, em 1995, com cancro, dá origem à criação dos Maggie’s Cancer Caring Centres, estruturas de apoio não institucionais a doentes de cancro, projectadas por arquitectos famosos como Frank Gehry, Richard Rogers ou Rem Koolhaas. A sua notoriedade serve-lhe para convencer arquitectos e instituições a concretizar o projecto idealizado ainda em vida com Maggie. No próximo ano serão 24 edifícios, essencialmente localizados no Reino Unido.

Foto
Garden of Cosmic Speculation, Escócia
Foto

Charles Jencks esteve em Lisboa a participar na conferência organizada pela Fundação Gulbenkian, “Saúde e Arquitectura”. A saúde é cada vez mais central no espaço público e mediático e as implicações da arquitectura tem sido um tema cada vez mais solicitado e analisado no plano académico e empresarial. Jencks fala de um placebo arquitectónico, um modo elegante de colocar as dúvidas que existem sobre a importância da arquitectura no quadro da saúde ou, aliás, em qualquer caso. Mas das polémicas do pós-modernismo para a questão da saúde, da vida e da morte, vai uma distância que Jencks vence bem.

Paralelamente, ganhou notoriedade como paisagista, desde que projectou Garden of Cosmic Speculation, em sua casa perto de Dumfries, na Escócia. Em Junho deste ano, inaugurou outra intervenção paisagística, Crawick Multiverse, não muito longe daí; e igualmente excêntrica e paradoxal, pós-moderna, pré-histórica, cosmológica.

Erudito e aristocrático mas também directo e cortante, é responsável por algumas das maiores polémicas da história e teoria contemporâneas. O modo como responde às questões sobre o actual ódio generalizado ao star-system dos arquitectos impressiona. Afinal ele é o Papa, e a sua igreja está a ser atacada. Jencks é benevolente com a rebelião. E, como esperado, muito incisivo e polemizador.

Foto

É dificil imaginar hoje um livro com o impacto de The language of post modern architecture, nas suas várias edições. Tinha noção na altura da tempestade que estava a criar?
Parcialmente. Fui formado por modernistas e por gente que seguia Le Corbusier, que era um grande polemista, pintava e esculpia, fazia arquitectura, escreveu 57 livros, desenvolveu vários discursos na sua própria cabeça, às vezes com resultados muito negativos. Le Corbusier foi a minha formação em Harvard e era aquilo em que eu acreditava no Movimento Moderno. E como Gorbatchov destruindo a União Soviética por acidente, acreditando em Lenine, eu usei Le Corbuser como um padrão para medir o modernismo tardio de que era crítico. Trabalhei com o Team 10 em 1966, em Urbino, e pode-se dizer que eu era mais moderno do que os modernos. De certo modo fui formado na ideologia moderna que aceitei, 90%.

Dentro da École des Beaux Arts de Paris se não houve revoluções, pelo menos deram-se renovações bem-sucedidas. Labrouste, por exemplo. Na Igreja católica há uma série de viragens não-violentas, incompletas. E, de certo modo, o modernismo é uma versão moderna do mesmo. Eu tinha muita consciência, como historiador, que há vários Movimentos Modernos. O meu primeiro livro, para lá de Meaning of Architecture [com George Baird], foi Movimentos Modernos em que eu ainda aceitava, como um revisionista, como Gorbatchov, o paradigma. Mas já era um pluralista na altura, como sou agora. O meu professor era Giedion, e fui formado por Sert, pelos corbusianos. Conhecia por dentro da igreja, o que era suposto acreditar e o que correu mal.

Mas previa o impacto do livro?
Essa é uma pergunta complexa porque tem muitas respostas separadas. Uma das repostas é: quando fui para Inglaterra em 1965, escrevi para Denys Lasdun que depois ficou um amigo, John Summerson, também um amigo, e James Maude Richards que me pediu um artigo para a Architectural Review. Depois de Harvard, o vaticano do modernismo, a Inglaterra era muito menos ideológica e severa. Achei-os discretos como os britânicos são e com mais nuances. Jantava com eles em festas e uma vez os Lasdun convidaram-me. Estavam lá todos e todos criticavam o modernismo, por dentro da igreja. Não o faziam em público e eu escrevi isso na imprensa e eles nunca me perdoaram por transformar em público o que era privado. Na verdade, eles perdoam aos americanos todos os erros… Summerson disse mais tarde que talvez o mais importante no pós-modernismo foi ter tematizado a morte do modernismo. Libertou os modernistas da ideia que o modernismo era eterno, não tinham pensado que podia morrer. Era impensável.

Mas há outras respostas.
Há vários fios condutores. Alguns são intelectuais e psicológicos. O meu pai [Gardner Jencks, pianista e compositor] educou-me como um pluralista. Sou um americano pluralista. Detesto linhas partidárias. Escrevi Movimentos Modernos contra as linhas partidárias que falavam só do “estilo internacional” branco. Giedion não considerava os expressionistas ou os construtivistas. Incrível! Eu estava contra este faire l’école. Contra a ideia de fazer uma divisão política dos factos mais importantes, como lhes chamava Giedion.

O meu “History as myth” em Meaning of architecture era um ataque a todos os historiadores. Escrevi-o para Reyner Banham que também ataquei. E ele gostou, já agora, disse-me que era uma “sucessão apostólica”. Disse-me: “eu segui Pevsner e ataquei-o e tu segues-me e atacas-me – é boca a boca”. Uma má metáfora!

Mas o modernismo resistiu. Alguém como Kenneth Frampton deu-lhe luta…
Eles resistiram. Eu conhecia o Frampton antes de o conhecer. Psicologicamente. Ele vinha do Team 10. Era no início um bom amigo. Quando chegou o pós-modernismo discordámos. Eu compreendi a crítica que ele fez ao Venturi. Ele achava que o valor do argumento de Venturi e da Denise Scott Brown era superficial. A ideia dos letreiros nos edifícios, eu concordei que era superficial. Também critiquei Venturi. Portanto Frampton e eu tínhamos um acordo a certos níveis.

A sua relação com Venturi nunca foi muito clara. Afinal foi ele que começou o movimento…
Sempre gostei dele. Em certos aspectos começou… mas também recusou ser pós-modernista.

Foto
Miguel Manso

O que é estranho…
É estranho e faz dele um modernista. Ele quer faire l’école e ser politicamente correcto, como se fosse possível.

Como aconteceu com o “brutalismo”, e com o Team 10, no plano académico o pós-modernismo terá o seu dia, poderá regressar como um segredo sussurrado?
Eu cito Oscar Wilde: “o único dever que temos com a história é reescreve-la” Ninguém gosta do pós-modernismo. Mas a reescrita da história está sempre a acontecer. O pós-modernismo regressou desde o ano 2000 em tudo menos no nome, acho que se pode dizer isso.

De facto, em The Iconic Buiding e em Story of Post-Modernism introduz a arquitectura icónica como resultado do pós-modernismo, diria quase como uma vingança do pós-modernismo. Há agora uma forte contestação à arquitectura icónica, ao star-system dos arquitectos, em favor do social e do low cost, o que seria uma nova morte do pós-modernismo. Como se sente o Papa do star-system?
Bem… não há qualquer hipótese. Só porque os arquitectos, as boas pessoas, e os pobres, os 99%, não gostam do 1% não significa que o 1% se vai embora.

Não na China.
Em lado nenhum. Vamos ser marxistas. Eu sou marxista, em certos aspectos. Marx era um bom crítico social e económico, mas um péssimo profeta. Era óptimo em descrever a alienação, os problemas do capitalismo. O capitalismo tardio é supercharged, turbocharged. O meu argumento é que desde que existam grandes corporações, fundos de soberania, o Dubai, a China Overseas, a hegemonia americana… As 500 maiores corporações são muito maiores que eram nos anos 1960, 70, 80. Cresceram como elefantes, são gigantes. E não se vão embora. Vão ficar maiores. Podemos chorar e dizer “revolução, revolução”, “é moralmente errado”, e tudo isso é verdade. Mas não vai ajudar os arquitectos a lidar com o edifício icónico. Desde que escrevi The Iconic Building, em 2003, participei em muitos debates. Os puritanos da arquitectura não gostam. Eu sou um velho puritano de New England e também não gosto, em muitos aspectos. Mas por eu não gostar não significa que vá desaparecer. Há razões estruturais para a sua existência. Decorre de certos falhanços. Um dos falhanços está na religião e nas narrativas sociais. Por outras palavras, com o fim do comunismo, com a morte das meta-narrativas sociais e a morte de qualquer princípio de organização da sociedade que possa funcionar a um nível global, a posição default é a do mercado pluralista, a do capitalismo tardio. Essa é a grande força. E depois há uma série de micro antagonismos. Por isso, vamos viver numa zanga perpétua. E é por isso que Gehry, Koolhaas, Zaha [Hadid] dizem fuck you para o público.

Têm que o fazer.
Têm que o fazer. Porque ninguém gosta deles e eles trabalham para o 1%. É horrível. Mas estamos onde estamos. A arquitectura produziu algumas das mais pessoas mais criativas, como Zaha, Rem [Koolhaas], Gehry, todos os star architects. Podemos ver na Wikipédia os 10 arquitectos que saíram da lista, os has-beens star architects, como Peter Eisenman, Venturi, Bob Stern. Anjos caídos que não conseguem encomendas. Mas é claro que conseguem…

Foto
A morte da sua mulher, Maggie Keswick, dá origem à criação dos Maggie’s Cancer Caring Centres, estruturas de apoio não institucionais a doentes de cancro, projectadas por arquitectos famosos como Frank Gehry (na foto), Richard Rogers ou Rem Koolhaas

É complicado. Moralmente, o que fazem arquitectos como Richard Rogers? Por um lado, desenham Maggie’s Centres. Como um modo de compensação moral. Se os arquitectos vão trabalhar para as grandes corporações – que é o que todos querem, independentemente do que dizem – têm que lidar com a questão dos edifícios icónicos e com a grande escala. A não ser que queiram ser arquitectos descalços. Se querem ser pequenos, descalços, e fazer o bem, façam-no. Se vão lidar com as corporações estão em território moralmente instável. Como podem manter a integridade moral? Uma maneira é fazer como fazem em silicon valley. Vou trabalhar para o mal e tentar lembrar-me de fazer o bem. A arquitectura é a segunda profissão mais velha do mundo… O outro modo é fazer trabalho de caridade. Richard Rogers tem várias organizações de caridade. E tenta fazer habitação social mas nunca consegue porque não engolem o seu modernismo… e ele não faz compromissos.

Com a emergência dos Maggie’s Centres podemos dizer que as suas preocupações passaram do campo da cultura visual que marca o pós-modernismo para uma outra sensibilidade?
Não, eu nunca estive comprometido com o visual. Em Meaning of architecture sempre defendi o significado antes da estética. A forma é importante, mas estive sempre interessado no significado. O pluralismo é o mais importante no pós-modernismo.

Os Maggie’s Centres são uma crescente realidade. Faço a pergunta fatal: a arquitectura muda alguma coisa? Fala de um placebo arquitectónico, o que é uma ideia bonita…
No início do pós-modernismo não acreditava que a arquitectura podia mudar a sociedade porque isso era a ideologia dos modernistas. A arquitectura faz diferença mas só de modo indirecto. Em 1999 fui entrevistado na BBC com um médico do NHS [Serviço Nacional de Saúde] e pensaram que eu ia defender o determinismo arquitectónico e o médico iria disser que isso é estúpido. O que aconteceu foi que eu disse que a arquitectura era importante como formação cultural mas não era suficientemente forte para mudar a sociedade ou o modo como as pessoas vivem. É mais como a roupa... E o médico disse que eu estava completamente engando: que se o edifício é mau, os médicos não aparecem para trabalhar. O que me fez lembrar a teoria de [Karl] Popper: “não podemos provar um positivo mas podemos provar uma negativa”.

Tem razão, o trabalho nos Maggie’s fez-me repensar o efeito feedback, o efeito placebo da arquitectura. Continuo a pensar que a arquitectura tem importância de um modo indirecto. Nesse sentido não mudei. Para se provar um efeito positivo, ter-se-ia que provar que tem um efeito positivo nos caregivers antes de provarmos que tem influência nos pacientes. O que a arquitectura faz é capacitar os caregivers a preocuparem-se com os pacientes. Mas é indirecto em ambos os casos. Os Maggie’s são sítios agradáveis para se estar, as pessoas gostam e o nosso grupo também. A arquitectura reforça o espírito do grupo, o nosso ethos. Mas não há um determinismo arquitectónico, como os modernistas pensavam.

A questão fundamental dos Maggie’s é a informalidade, a domesticidade, a familiaridade, a mesa da cozinha?
O essencial é que são um híbrido. Não são edifícios institucionais, são lares que não são uma casa, museus que não são uma galeria de arte, igrejas que não são religiosas. São 4 não-tipos, é uma mistura ecléctica em que a arquitectura inspira o paciente a arriscar. Os nossos edifícios são todos agradáveis, familiares, alegres, confortáveis, mas também correm riscos, são pouco habituais, provocatórios, e isso é muito importante no cancro. Porque se temos cancro e nos foi dada uma sentença de morte temos de ter uma esperança que nos transforme. Temos que pegar em pessoas que estão destruídas pelo diagnóstico e pela realidade e darmos-lhe coragem para lutarem. E isso é um risco. Uma das componentes da arquitectura é essa. Muitas pessoas não gostam dos Maggie’s quando chegam. Mas depois gostam, dos riscos que se correm. É um complexo híbrido.

Foto
Crawick Multiverse, Escócia

E não só doméstico.
E é aí que é pós-moderno. Todos os Maggie’s Centres são complexos e contraditórios para regressarmos a Venturi. Um das coisas boas do pós-modernismo foi que ensinou a “complexidade e contradição” agora há já 40 anos. E os arquitectos ficaram muito bons nisso. Não tenho que lhes dizer nada.

O que pensa destas teorias do Evidence Based Design que tentam estabelecer uma causa-efeito para a arquitectura, ao modo científico…
Antes do mais é uma ideologia, para criar trabalho, para fazer conferências à volta do mundo, para bater em portas abertas. Acho que é um bocadinho rasca… mas é compreensível como ideologia.

Inaugurou em Junho o Crawick Multiverse, na Escócia, uma das suas paisagens cósmicas que começaram com o Garden of Cosmic Speculation. Podemos ver esta experiência no quadro da tradição britânica das construções pré-históricas. Nesse caso, seria um pós-modernismo radical não de regresso ao classicismo mas a pré-história…
Pode parecer isso mas Crawick Multiverse é baseada na pré-história porque só tínhamos 2 000 pedregulhos. Isto parece uma desculpa modernista, não parece? Havia pouco dinheiro. Custou 1 milhão de libras, que parece muito dinheiro, mas 500 mil foram usados para a descontaminação do lugar. Não havia dinheiro para a arte e para a arquitectura. Só tínhamos pedregulhos e tínhamos que os pôr em linha. Fui um modernista primitivista e coloquei-os numa linha como Le Corbusier.

Sugerir correcção
Comentar