Morte e fogo e flores e lixo

Um romance dilacerante sobre o amor e a perda

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Filipe Homem Fonseca é exímio a extorquir ao quotidiano de todos nós frases feitas e lugares-comuns Bruno Simão Castanheira

Diz a badana: Filipe Homem Fonseca nasceu em 1974, é licenciado em Publicidade, e apenas humorista, argumentista, dramaturgo, músico, escritor e realizador. Escreveu um primeiro romance — Se não podes juntar-te a eles, vence-os (Divina Comedia) —, e, agora, este Há sempre tempo para mais nada. Publicitário, músico, realizador não são pormenores, pulsam na escrita. Pelo ritmo a que no caudal urgente se debita, pela sua visualidade cénica, quer na focagem intensiva do peculiar, quer nos travellings urbanos — a Lisboa de bairro popular, suja, entre a Graça e Arroios, pequena e pequeno-burguesa; e a Índia de Varanasi, a cidade sagrada hindu, rente ao Ganges, em cujos ghats (escafarias) os corpos são cremados ao entardecer (e as suas cinzas lançadas ao rio) ou atirados inteiros, sem cremação (os dos mais pobres, sem meios para a madeira das piras), juntamente com os das vacas, muitas flores e outros objectos (um lugar que os corvos não cessam de rondar, debicando em pouco tempo os cadáveres, até aos ossos). As velas acendem-se à noite guiando as almas pelo rio. Fogo contra fogo. Até ao incêndio final. Fogo em terra e fogo pontilhado rio abaixo. Ao mesmo tempo que, durante o dia, as pessoas se banham até à cintura e bebem da sua água sagrada. Entre a Índia e Lisboa, a ida e a volta, o mesmo ethos de perda e morte.

É uma escrita pontuada pela extorsão ao quotidiano de frases feitas, lugares-comuns acolhidos do dia-a-dia de todos nós — labor em que Filipe Homem Fonseca é exímio. Sempre à beira de resvalar por acumulação para a caricatura de si próprio, o autor corre esse risco, mas, no limite, recua e o todo é subsumido por um pathos avassalador, o desta escrita que parece ter sido produzida como se respira. É este demónio torrencial que arrasta consigo um alicerce de estruturação romanesca meticulosamente pré-definido; um mesmo fio de voz reúne a do narrador na primeira pessoa, a de um tu feminino que este supõe, e a de uma reacção possível deste (e de outros) às asserções ou conjecturas do primeiro. Tudo isto trabalhado graficamente até por parêntesis dentro de parêntesis e por arranjos particulares dos parágrafos (literalmente falando).

O enredo: um homem, o que enuncia, ex-professor, (re)vive a mulher e a morte dela. Mora num bairro de uma zona entre o popular e o pequeno-burguês onde todos se (re)conhecem: a Dª Lena que não tem dentes e só come sopas, o senhor Arlindo que tem o carro sempre parado à porta, o cego... este microcosmos permite ao autor manobrar conversas banais que traduzem o dia-a-dia. Excluído do ensino, o narrador conhecerá o senhor Jeremias, livreiro que parte movido pelo gene da viagem, da nostalgia de um lugar desconhecido, ao contrário do narrador, homem do ficar e da memória que fixa. Que grita mais do que uma vez à mulher morta, em maiúsculas: “FICA”.

Duas traves-mestras alicerçam este livro: pormenor e simetria. A sua visão do mundo é feita do que resulta do enlaçamento, ou do choque de partículas, de pormenores que rodopiam vertiginosamente em volta — mesmo “a morte é um pormenor”. Em Lisboa ou na Índia, também ”a dist ância é um pormenor”. Talvez por isso a física quântica seja convocada e sustente essa mundividência. Sublinha-se a simetria porque a memoria espicaçada e delirante refaz na viagem um outro/mesmo tu à medida do que o narrador imagina que a primeira mulher, morta de um cancro, gostasse e com que se identificasse: “Queres que te transforme numa pessoa de quem gostes. Foi para isso que aqui viemos.” A memÓria delirante escreve na Índia: ”Atrás de ti, desenha-se o rio (...) ainda dormes e eu observo-te, volto costas ao Ganges para te ver sobre a cama, à mercê dos mosquitos.”

Filipe Homem Fonseca, como aliás se adivinhava no primeiro romance, escreve-nos páginas dilacerantes, cruas, de rara intensidade e beleza sobre o amor e a perda. Um exemplo: “Enchi de água a banheira, despi-te sem olhar para o teu corpo, beijei-te a testa seca (...). O amor é isto, eu a limpar a tua merda do colchão e das roupas do teu corpo. E tu a chorar porque não podias fazer nada para me ajudar. É de uma violência atroz, não se deseja a ninguém. Estávamos reduzidos àquilo e todos os dias era cada vez menos.”

Há sempre tempo para mais nada é o sortilégio de um amor, da doença e da morte, e do apodrecimento paralelo do mundo. Os dois, amor e morte, reencarnam na Índia. Alucinadamente.

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